ouvir escutar e falar

Com frequência, ouvimos dizer que estamos na Era do Conhecimento, denominação que indica o valor que damos ao conhecimento, visto como nosso melhor capital. Nas organizações humanas, a importância do conhecimento vem de suas muitas aplicações. À transformação de ciência em algo que utilizamos na prática, damos o nome de tecnologia. Em toda tecnologia, aparecem três indivíduos ou três equipes: aquele que concebe o artefato, o que o fabrica e quem o utiliza. Vêm daí algumas das principais competências pedidas pelas organizações na presente era: criatividade, colaboração, autonomia, empatia e experiência, além de talento.

A primeira equipe é a que pensa um meio de atender uma necessidade da terceira; a segunda transforma o imaginado em artefato (faz a intenção da primeira se concretizar); a terceira é a dos usuários do produto. Assim, por exemplo, o criador de uma bicicleta pensa em quem vai usá-la, o fabricante transforma esse pensar em bicicleta e o consumidor a utiliza. Sob essa lógica, a tecnologia é meio de comunicação entre o criador e o consumidor. A mais disso, é o usuário que transforma o imaginado em prática. O intuito do produtor é oferecer um produto que deixe o consumidor satisfeito, propósito que vem expresso na propaganda: “Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta!”, “Quem manda é o cliente!” ou “”Deixe aqui sua avaliação de nossos serviços!” .

Muitas vezes, um artefato tecnológico vem acompanhado do manual de instruções: ele nos ajuda a descobrir o modo de utilização. Em geral, no manual vem escrito um alerta: “Atenção! Não use esse aparelho, sem antes ler estas instruções”. As instruções são pistas que servem de ligação entre o imaginado e o praticado. Tal condição implica ser o usuário quem gerencia uma tecnologia e a ele cabe decidir sobre sua utilização. Seguindo o manual de instruções, o usuário começa a andar de bicicleta. No início, é comum que precise de uma ajuda para se tornar um ciclista. Esse processo de aprender a usar um objeto é designado por alguns como “percurso de aprendizagem” e, por outros, simplesmente aprendizagem. Há também, aqueles que o chamam de construção de competências. O modo de fazer esse percurso é chamado de método, soma de meta com hodos, palavras gregas usadas para dizer, respectivamente, objetivo ou endereço e caminho. Assim, método indica o modo de andar rumo a determinado endereço, ou, se preferirmos, como fazer para conseguir me tornar um ciclista. Podemos até escolher se queremos ser um excelente ciclista, um ciclista mais ou menos e, ainda, ser mais um ciclista qualquer.

Seja qual for a designação, todo objeto ou acontecimento ou situação pode ser visto como objeto de aprendizagem, algo que facilita a construção de competências. Sob essa perspectiva, competência é mistura de conhecimentos, valores e procedimentos. Se quisermos, podemos enxergar o cidadão competente como aquele que, no seu agir, associa o saber teórico com o saber ético e o saber político. Também podemos perceber aprendizagem como a arte de saber viver, o que faz aprender virar sinônimo de viver.

Acrescentamos que uma tecnologia é neutra, no sentido de que pode ser usada de acordo com o seu criador ou não. Essa condição serve de critério para distinguir o bom e o mau uso. Voltando à bicicleta, observamos que o usuário pode utilizá-la para se movimentar, de acordo com a concepção do criador, ou, então, exibi-la em sua coleção de objetos, mostrando ser seu dono e dela poder fazer o que bem entender. Muitas vezes, usamos a exposição de valores no intuito de chamarmos atenção ao que temos, na doce ilusão de que o que temos enriquece o que somos: “Quando sair de seu carro, todos saberão quem você é!” era o refrão usado na propaganda de certo automóvel, lançado no mercado brasileiro nos anos 70 do século XX.

Sob essa ótica, vamos examinar o uso que podemos fazer da tecnologia do templo, aquela formada por dois quadrados, um traçado na terra e outro, no Céu. Ela se apresenta como artefato a ser usado na comunicação entre a Terra e o Céu, entendido como lugar habitado pela divindade. Levada para o templo, é usada pelo sacerdote e pelos crentes para ouvir o oráculo, a fala da divindade; a escuta do oráculo tem como finalidade descobrir o caminho a seguir em nosso fazer terrestre, de modo que nossa prática esteja de acordo com a recomendada pela divindade. Jesus de Nazaré nos apresenta essa ideia quando define o seu seguidor como “aquele que ouve a palavra de Deus e a põe em prática”. O manual de instruções da tecnologia do templo vem, em geral, na forma de livro sagrado ou de tábuas da lei. Neles aparece o que devemos ou não fazer, a fim de agirmos de acordo com a intenção da divindade.

Oráculo é linguagem e nos leva a pensar na oralidade, que enfatiza a percepção de divindade como ser que fala e de homem como “o ser vivente capaz de falar”. Essa ideia aparece no uso que fazemos de infância, uma fase da vida em que somos infantes, literalmente os que não sabem falar. Ela nos leva, também, a imaginar a divindade como a Palavra e, em consequência, enxergar cada ser humano como uma palavra. Esse processo de aprendizagem do saber falar é chamado de oração. Assim, oração é a escuta de uma voz, feita com a finalidade de nos dar voz. Usamos oração para indicar o discurso, a fala bem articulada e destinada a organizar. Ela transmite paz porque nos leva a estabelecer a ligação entre os muitos seres com os quais habitamos a Terra, bem como nossa ligação com todos e com tudo. A esse estabelecimento de relações damos o nome de amor. Praticantes do amor, revelamos nossa crença em um divindade que é AMOR.

Como toda tecnologia, a do templo depende dos usuários, no caso o sacerdote e os que compõem a assembleia. É comum a postura do sacerdote que se coloca voltado para a divindade e de costas para a assembleia. Primeiro ele escuta o oráculo e, depois, virando-se para o povo pronuncia sua oração, lá de cima do púlpito. Existe, também, o sacerdote que coordena a assembleia para, juntos, se colocarem à escuta do oráculo. O usuário do templo pode produzir uma oração ou seu contrário, que chamamos de sermão. Sermão significa um discurso mal articulado e que desarticula. Muitas vezes, é uma fala pronunciada aos gritos, traz ameaças de castigo e, quase sempre, provoca discórdia. Nesse sentido, a paz é conseguida por meio da palavra que dialoga, enquanto a discórdia é filha do grito ou da imposição, por se basear no “tem razão quem fala mais alto” ou “manda quem pode”, quase sempre insinuando o comando de “cale a boca”.

Tanto o sacerdote que faz uma oração quanto o que pronuncia um sermão diz estar falando em nome de Deus. Na análise desses discursos, precisamos levar em conta não somente quem fala, mas também de que Deus está falando. Sem esse exame, corremos o risco de “cairmos no conto do vigário” . Vigário significa substituto. No templo, é o que se põe no lugar de Deus. Por vezes, o vigário não passa de um vigarista ou charlatão: é o falso profeta ou o mau pastor ou o impostor. Podemos acrescentar que o templo é lugar onde prestamos culto ao nosso senhor, aquele que escolhemos entre Deus e Dinheiro. Sob essa perspectiva, o templo é ou a casa de Deus ou a casa do Dinheiro, nossas duas únicas opções. Fica para nós escolhermos fazer do templo uma casa de oração ou um lugar de comércio.

Vamos levar a tecnologia do templo para a sala de aula e estudar o que acontece no seu interior. Nesse exame, damos ênfase ao modo de agir dos usuários. Na sala de aula, o professor substitui o sacerdote, os alunos formam a assembleia e a divindade é trocada pela Ciência ou, se preferirmos, pelo conhecimento. Na escola costumamos dividir as ciências em disciplinas ou matérias. Disciplina é termo usado para indicar algum conteúdo que, para ser aprendido, precisa da ajuda de algum entendido no assunto. O que quer aprender é o discípulo e o entendido é o professor. Matéria lembra Ciência que procura descobrir o que tem por dentro da natureza, a matéria onde moramos. A matéria que está perto de nós é a Mãe Terra, a Mater de onde tudo nasce. De mater, que significa mãe, vem matéria e, também, maternidade. No contexto escolar, matéria é, pois, um pedaço da Ciência. Ligado a essa ideia vem a denominação de aluno como aquele que precisa ser alimentado com alguma matéria.

Para nos ajudar nessa análise, recorremos a Sócrates, filósofo e pedagogo grego. Segundo historiadores, viveu entre os anos 469 a.C. e 399 a.C. e não deixou nada escrito. Suas salas de aula eram praças de Atenas, seus alunos, jovens da cidade e as disciplinas, Religião, Política e Filosofia. Sócrates se comunicava com os alunos por meio da fala e pretendia, por meio da fala, fazer com que seus discípulos também falassem. Suas aulas consistiam em conversas com os alunos: 35 desses diálogos foram escritos por Platão, o mais famoso de seus alunos.

Para fazer o discípulo falar, Sócrates usava o método chamado maiêutica, palavra que designa a arte de partejar ou a arte da parteira. Literalmente, Sócrates pretendia ser um parteiro do saber. Ele acreditava que, assim como a criança está dentro do útero materno, o saber está dentro de cada discípulo e a tarefa do mestre consiste em ajudar o saber nascer. Essa ideia pode nos lembrar de educação como processo de conduzir para fora as capacidade de cada indivíduo.

Para fazer o parto, Sócrates costumava formular perguntas para conhecer quem sabia o quê. A partir das respostas dos discípulos, começavam os diálogos, feitos de perguntas e respostas, que levavam ao nascimento do saber. Sócrates achava que o saber é algo muito extenso e o que sabemos é muito pouco. Dizia para quem quisesse ouvir: “Só sei que nada sei!”.

O método socrático considera o conhecimento como algo que se constrói e não como algo que possa ser transmitido. A mais disso, o método sugere que, à medida que vamos construindo conhecimento, vamos construindo a nós mesmos. Talvez influenciado por seu trabalho como escultor, antes de se dedicar à filosofia, Sócrates tenha adotado um método que tem como foco unir o saber ao fazer. Atualmente muitas escolas adotam o construtivismo como teoria que embasa seu método de trabalho: essa teoria defende “ser o sujeito o construtor do próprio conhecimento”.

Podemos acrescentar que o método utilizado por Sócrates tem como finalidade o aprender a pensar. Pensar é a capacidade que nos possibilita articular ideias e, com isso, fazer um discurso articulado. Dito de outra maneira, construir o saber pensar nos torna competentes para falar, nos faz aprender a ter voz. Dessa percepção, podemos definir o professor ou o mestre como aquele que cuida para que o aluno aprenda. Este é o princípio da sala de aula invertida: no lugar do professor que fala ao aluno sobre o que aprendeu, entra o aluno que, com a ajuda do professor está aprendendo a falar. É também o princípio da democracia: no lugar do professor que é dono da voz, entra o aluno que, com a ajuda do professor, aprende a ter voz.

Por estimular as pessoas a pensar, questionar as regras e desenvolver o lado crítico, Sócrates foi acusado de ser contra a democracia. Também foi acusado de ser ateu por não acreditar nos deuses da cidade de Atenas e, com isso, ensinar os jovens a serem selvagens e desrespeitosos. Com essa ficha criminal, o Conselho dos Quinhentos, órgão político democrático ateniense, condenou Sócrates à morte, a menos que mudasse sua forma de pensar.

Sócrates disse que preferia morrer a desmerecer toda sua capacidade filosófica. Aos 70 anos, optou por acabar com sua vida ingerindo um copo de cicuta (veneno).

Depois de acompanharmos o Mestre Sócrates, melhor refletirmos sobre seus ensinamentos e nos perguntarmos que método utilizamos e como podemos levar a maiêutica para dentro da sala de aula, que resolveu quebrar a rotina de nossas casas.

Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar, eu vivo pra consertar

Na boiada já fui boi, mas um dia me montei
Não por um motivo meu, ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade
Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu

Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente, pela vida segurei
Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando
As visões se clareando, até que um dia acordei

Então não pude seguir valente em lugar tenente
E dono de gado e gente, porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente
Se você não concordar, não posso me desculpar
Não canto pra enganar, vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar

Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu querer ir mais longe do que eu

Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
Já que um dia montei agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte num reino que não tem rei

(Disparada — Geraldo Vandré / Theo de Barros)

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