prazer em servir

Monte de arroz

– Mestre, eu gostaria de saber qual a diferença entre o Inferno e o Céu!

– A diferença é muito pequena, gafanhoto!

Eu vi um monte de arroz fumegante, cheiroso e pronto para ser comido! Em volta dele, estavam pessoas. Pareciam muito tristes, famintas e desnutridas. Tinham longas colheres amarradas em seus braços. Estendiam seus braços, pegavam uma colherada de arroz e, desesperadamente, tentavam trazer a comida à própria boca. Não conseguiam porque seus braços eram muito compridos. Isso é o Inferno!

Eu vi outro monte de arroz fumegante, cheiroso e pronto para ser comido! Em volta dele, estavam pessoas. Pareciam muito alegres, satisfeitas e bem nutridas. Tinham longas colheres amarradas em seus braços. Estendiam seus braços, pegavam uma colherada de arroz e, em vez de trazerem a comida para a própria boca, a serviam uns para os outros. Conseguiam porque seus braços eram muito compridos. Isso é o Céu!

Na tradição oriental, é comum chamar de mestre aquele que fala a respeito da sabedoria do viver humano ou, se preferirmos, sobre o modo de concretizar a Biologia do Amor. A fim de praticar a Biologia do Amor, os humanos fazem uso da Biologia do Conhecimento: organizam a ciência e, a partir dela, constroem instrumentos ou ferramentas destinados a ajudá-los nos seus afazeres, ações e processos que implantam. Sob essa perspectiva, ciência e sabedoria respondem pelo nosso agir na biosfera, onde vamos construindo nossa história. Com elas somos capazes de fazer de nossa casa um paraíso, um lugar que alimente permanentemente a vida.

Para fixar ideias, consideramos três espaços que utilizamos para viver em sociedade: a economia, a política e a fé. Em todos eles, usamos nossas falas, a característica própria da espécie humana. São elas que nos abrem a possibilidade de intervir na natureza e em nós mesmos, de modo cooperativo. Essas intervenções nos permitem criar o habitat humano que os gregos chamavam de ethos. Daí vem ética, a arte humana de organizar o pedaço de mundo que escolhemos cuidadosamente, lhe damos um nome e onde construimos nossa habitação.

A economia engloba tudo aquilo de que necessitamos para viver de forma humana, como, por exemplo, casa, alimentação e assistência à saúde. Economia expressa a ideia de administração de tudo o que está relacionado a uma casa. É formada de oikos (que significa casa ou morada) e nomos (que traz a ideia de administrar, distribuir, gerenciar).

A política é o espaço social, uma casa ampliada, onde é preciso cuidar do bem-estar dos moradores. Para isso são instituídas normas destinadas a garantir a coesão no grupo social, mediante a justiça que prescreva igualdade de direitos e deveres, meio de garantir e zelar pela paz. Nessas casas maiores, vilas, cidades, estados e países, surge a necessidade de investirmos em escolas e oportunidades de trabalho. Com a linguagem e o trabalho somos capazes de viver em grupos e de construir a cultura. É por meio do trabalho que criamos instrumentos e artefatos tecnológicos utilizados tanto para transformar a natureza quanto para construirmos novas linguagens, novos conteúdos da consciência, novas formas de sentir e valorar, novas maneiras de nos relacionarmos psicológica e socialmente uns com os outros.

A fé é o espaço onde desenvolvemos nossa espiritualidade ou, se preferirmos, nossa mística — nossa relação com o mistério da vida que organiza e move o Universo. Ela empresta sentido à história que escrevemos na biosfera terrestre, pequeno espaço da biosfera cósmica. Cada cultura busca meios de se encontrar com o Mistério que se esconde e se revela no universo e em cada coisa. Ele recebe mil nomes: é Olorum da cultura nagô, Javé da cultura hebraica, Alá para o muçulmano, Tao para chineses e japoneses, Pai e Mãe da cultura cristã. Toda cultura tem a marca registrada do ser humano que, por sua vez, vem marcado por ela.

Em todos os espaços, somos desafiados pelas questões sobre o que produzir, como produzir e para quem produzir. A biosfera tem todos os ingredientes para a produção de um monte de arroz. Os humanos desenvolveram tecnologias que ajudam na produção de um arroz saboroso, pronto para ser consumido. Temos também longas colheres que nos possibilitam pegar o arroz preparado e escolher para quem vai nossa colheita. A decisão sobre o que fazer com o que produzimos, utilizando as mais diversas tecnologias, continua presa a nossas mãos.

Uma das milenares expressões da sabedoria oriental, construída a partir da observação da natureza e de experiências de vida, admite que tudo possui uma identidade, nascida de uma única fonte, designada por Tao. A palavra indica “trilha, caminho, estrada”. Pode indicar tanto o caminho do universo, das coisas e das pessoas quanto a energia cósmica que tudo penetra, tudo move, tudo sustenta, tudo anima e tudo faz convergir. Essa energia originária é chamada pelos chineses de Shi, que podemos traduzir como sim ou sopro que anima e faz respirar.

A tradição do Tao vê a história como jogo dialético entre dois princípios complementares: yin e yang. São duas forças que atuam em todos os fenômenos e estão presentes em tudo. Funcionam como polos positivo e negativo de uma bateria. Nada é totalmente yin e nada é totalmente yang. Usa-se a montanha para simbolizar essas duas energias. O lado sul da montanha, iluminado pelo Sol, é yang. O norte, coberto de sombra, é yin.

Yin, palavra usada para dizer sombreamento, corresponde à Terra. Ele se expressa por qualidades femininas, presentes no homem e na mulher, como o cuidado, a acolhida, a nutrição, a ternura, a conservação, a cooperação, a intuição, a sensibilidade pelos mistérios da vida e da natureza, a síntese do complexo. Yang significa luminosidade e corresponde ao Céu. Ele ganha corpo em qualidades masculinas, na mulher e no homem, como o trabalho, a autoafirmação, a competição, a objetivação do mundo, a racionalidade discursiva e a análise.

Assim, sob a perspectiva do Tao, as duas forma de energia — yin e yang, masculino e feminino — andam sempre juntas, são inseparáveis e complementares. Em sua sabedoria construída na experiência de vida, o taoísmo ensina que essas duas energias devem ser balanceadas para que a vida evolua de forma dinâmica e harmônica. Essa equilibração entre feminino e masculino ou entre seus adensamentos maiores, mulher (anima) e homem (animus), precisa ser buscada em todo espaço onde convivam grupamentos humanos.

Em nossa cultura ocidental, enfatizamos muito mais o masculino do que o feminino e, por isso, escolhemos construir uma cultura materialista, industrialista e predadora. Essa opção permitiu que a racionalidade recalcasse e até mesmo desprezasse o emocional, que a ciência fosse inimiga da fé, que o poder negasse a partilha, que a concorrência prevalecesse sobre a cooperação e a exploração da natureza negasse o cuidado e o respeito pela vida. Criamos um monte de arroz que é servido somente para nós e nossos poucos amigos.

Esse desequilíbrio pode aparecer em todo grupo humano, seja qual for seu tamanho. Está presente na economia, na política e na fé. Quanto maior o grupo social, maior o poder de seus dirigentes e mais amplas são as consequências de suas escolhas. A mão grande que distribui o monte de arroz pode entregar comida somente para saciar a fome de seu dono. A mesma mão é capaz de oferecer comida a todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, cooperam na sua produção, desde o grão semeado até o prato servido.

Terminamos com uma sugestão de como cuidar bem de nossa morada e nela permanecer por mais tempo. Durante oito anos, o pesquisador Dan Buettner, em parceria com a National Geographic, estudou populações que viviam muito acima da média. A partir dos dados levantados, Buettner começou a esboçar o mapa da longevidade e ganhou fama com seu livro “Zonas azuis, lições para viver mais e melhor”. Sua obra é um convite para conhecer e seguir os hábitos dessas comunidades, que têm pratos e práticas comuns.

Todas as comunidades observadas cuidam da alimentação, valorizam o convívio social e cultivam a fé. Um bom símbolo desse modo de viver é a mesa usada para refeições, em torno da qual se reúnem os comensais. Na mesa estão os alimentos que sustentam nosso corpo. Em volta da mesa se postam as pessoas que, nesse ritual, conseguem se religar com a terra, com os outros e com o universo. É em volta da mesa que se reúnem os companheiros (termo formado de cum ‘com’+ panis ‘pão’), literalmente aqueles que partilham o pão.

Toda natureza é um desejo de serviço:

Serve a nuvem, serve o vento, servem os vales.

Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu;

Onde haja um erro para corrigir, corrige-o tu.

Sê aquele que afasta a pedra do caminho,

O ódio dos corações e as dificuldades de um problema.

Existe a alegria de ser saudável e de ser justo.

Mas existe, sobretudo, a linda e imensa alegria de servir.

Como seria triste o mundo se tudo já estivesse feito,

Se não houvesse um roseiral para plantar, uma empresa para iniciar|

Que não te seduzam somente os trabalhos fáceis.

É tão belo fazer a tarefa que outros se recusam executar!

Mas não caias no erro de que só se conquistam méritos

Com grandes trabalhos.

Há pequenos serviços que são imensos serviços:

Enfeitar a mesa, arrumar os livros, pentear uma criança.

Se existe aquele que critica ou que destrói,

Sê tu aquele que serve.

O serviço não é tarefa de seres inferiores.

Deus, que dá o fruto e a luz, serve.

Poder-se-ia chamá-lo assim: Aquele que serve.

E Ele, que tem os olhos em nossas mãos, nos pergunta todo dia:

“Serviste hoje? À árvore, a teu amigo, a tua mãe?”

(O Prazer de Servir — Gabriela Mistral)

Gabriela Mistral (1889–1957) foi uma poetisa, educadora e diplomata chilena, primeiro nome da América Latina a vencer o Prêmio Nobel de Literatura (1945).

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