mudando de quadro

Entre os romanos, existia o áugure, aquele que advinha, interpreta ou prediz. A tecnologia que utilizava para realizar seu trabalho consistia basicamente em traçar um quadrado na terra e imaginar outro, desenhado no céu. Postado na terra, o áugure observava o voo de pássaros e, com isso, podia perceber a direção do vento no quadrado celeste. A partir do modo de o vento soprar, o áugure pronunciava seus augúrios, destinados a orientar o consulente sobre o que precisava fazer. Até hoje nos referimos a pássaros de bom agouro e dizemos auguri, no jeito italiano de desejar felicidades. Os romanos usavam o termo templum para nomear essa tecnologia. Vem daí templo, palavra usada em muitas religiões para designar o lugar onde o crente, plantado na terra, busca descobrir em que direção sopra o vento, representação do espírito. É nosso ritual humano para expressar nossa religiosidade, ou espiritualidade, que busca ligar a Terra ao Céu ou o humano ao divino.

De templo, vem contemplar que traz o sentido de olhar atentamente, considerar ou meditar. Assim, contemplação e meditação indicam a atitude de quem se concentra e busca as conexões existentes no universo, ligações feitas pelo sopro de vida ou o espírito vivificador que invade tudo e todos. A contemplação e a meditação, efetivamente, são exercícios que nos deixam cada vez mais conectados: nos ajudam a ter foco, desenvolvem nossa atenção e agregam significado a tudo o que fazemos, bem como aos acontecimentos e situações.

Para indicar a mesma ideia latina de templo, os gregos usavam theorein, palavra que significa ver. Dentro de theorein, vem Theos, termo que designa Deus, considerado como Aquele que vê. Encontramos indicativos desse conceito no Deus representado por um olho e, também, entre os egípcios que, nas múmias, desenhavam os olhos, baseados na crença de que a comunicação com a divindade se dá por meio dos olhos. Desse modo, podemos perceber teoria como nossa tentativa de fazer com que nosso modo humano de ver se pareça cada vez mais com o divino.

Cada um de nós constrói a própria teoria, formada pela visão que tem de mundo, dos outros e da divindade. É nessa visão que fundamenta e orienta sua prática, concebida como seu fazer no relacionar-se com a natureza, entendida como vida que se mostra no mundo, nos outros e na divindade. A construção da teoria acontece nas relações e por meio das relações. Dito de outra forma, à medida que nos relacionamos, construímos nossa teoria e, nesse relacionar, instituímos nossa prática. O que acontece com o indivíduo é replicado em todo grupamento humano — família, escola, empresa, cidade e país, entre outros. Todos esses grupamentos refletem em suas práticas as próprias teorias.

Construir nossa teoria na relação nos traz a necessidade de clarear cada vez mais nosso entendimento de mundo, do outro, da divindade e de nós mesmos. Formamos um quarteto cujos elementos se inter-relacionam. Nessa busca de conhecimento, as ciências e as tecnologias podem nos prestar importante ajuda: são elas que nos fornecem pistas e instrumentos que melhoram nossa percepção e contribuem para nossa formação humana.

Podemos chamar a teoria de pensamento ou modo de pensar; usamos, ainda, consciência para designar teoria. Vem daí a percepção de aprendizagem ou educação como conjunto de ações e processos de formação do pensamento (o aprender a pensar) ou formação da consciência (o saber crítico). Podemos, ainda, considerar a busca do conhecimento como a busca da verdade, a verdade que se torna caminho que nos leva ao nosso tesouro, onde está nosso coração. Essa é a verdade que nos liberta e nos faz andar. Essa qualidade de libertadora pode servir de critério que nos ajuda a distinguir o falso do verdadeiro.

Podemos acrescentar, ainda, o aspecto de complementaridade entre teoria e prática: ao mesmo tempo em que a teoria alimenta a prática, a prática questiona constantemente a teoria. Funciona como jogo de espelhos em paralelo: ao se olhar na prática, a teoria percebe novos modos de ver e, de forma semelhante, ao se olhar na teoria, a prática descobre novos modos de fazer. Expressamos essa condição quando dizemos que “na prática, nossa teoria é outra”. Nesse diálogo entre teoria e prática, ambas se renovam. Por meio dessa conversa entre poesia e prosa, arte e tecnologia, fé e ciência, vai surgindo novo modo de ver e, em consequência, novo modo de fazer.

A tecnologia do templo aparece em praticamente todas as organizações humanas. Do templo, pulou para as igrejas, onde o áugure virou sacerdote (o que ensina a partir do sagrado) ou pastor (aquele que mostra onde está o bom pasto); ambos imaginam um quadro onde leem a verdade do céu. Foi para as escolas, onde aparece o professor (aquele que fala do seu credo); mostra no quadro a verdade que imagina vir da ciência. Chegou até os países, onde estão os juízes (aqueles que dizem o que é direito e dever); carregam um quadro onde escrevem as leis. Ela também está no globo terrestre: nele marcamos o hemisfério norte, onde os economistas ditam as leis do mercado, de acordo com as quais devemos andar no reino do capital. O templo, ainda, está em cada um de nós: desenhamos no quadro o nosso ideal, na tentativa de “amarrar nosso arado a uma estrela”.

Sob a perspectiva de que as organizações humanas espelham, em sua prática, sua visão de mundo, dos outros e da divindade, vamos examinar a escola como espaço onde as ações e processos implantados são direcionados pela concepção de conhecimento, ou seja, pela teoria sobre conhecimento. Consideramos que a escola se dedica ao trabalho com o conhecimento e que, por meio desse trabalho, educa. Antes de nossa andança por dentro da escola, podemos acrescentar que a falta desse norte caracteriza uma organização sem direção e que desconhece o endereço onde quer chegar.

Possivelmente, o fato de as escolas conceberem o conhecimento como algo revelado ou recebido pronto e acabado tenha contribuído para a percepção da escola como transmissora de conteúdos e de credos. A sala de aula é feita em forma de auditório com filas de carteiras alinhadas, destinadas aos alunos; conta, por vezes com um estrado encimado por um quadro negro onde fica também a mesa do professor. Essa tecnologia, a sala de aula e seu mobiliário, induz o professor à aula expositiva e, muitas vezes, à aula copiada: o professor copia a matéria no quadro, o aluno copia no caderno e precisa memorizar a cópia a ser reproduzida na prova. Como essa linha de cópias exige memorização, nada mais lógico que o uso de cola, escrita no papel, de memória fotográfica.

De maneira um tanto caricata, a sala de aula descrita, espelha a escola que chamamos de tradicional. Parece ser feita para que os estudantes vejam as nucas dos colegas, sempre de frente para o quadro, onde o professor escreve suas verdades, também ele de costas para os alunos. Costumamos dizer que “o professor trabalha de costas para o futuro”, aqui indicado pelo alunado. Em algumas escolas, o quadro negro foi pintado de verde ou ficou branco; em muitas, foi substituído por uma tela onde são projetados slides ou filmes. No ensino virtual, essa mesma sala de aula foi parar dentro de casa, trocando o quadro por telas ou telinhas — TV, celular, notebook, tablet, entre outras. Em praticamente todas essas salas, físicas ou virtuais, o livro não aparece e grande parte dos alunos numerados não responde à chamada.

Como acontece em toda instituição viva, na escola tradicional existe uma dinâmica que podemos chamar de conservadora. Convencidos de que “não se mexe em time que está ganhando” ou crentes na nossa verdade, nos aferramos ao status quo, defendemos as tradições, os ordenamentos e remunerações. Pouco nos importam exclusões provocadas, pois “quem não quiser se enquadrar” tem total liberdade para ficar fora. É o templo possuidor da verdade, sinalizadora do caminho que leva ao saber. Fora desse templo, onde reina a ignorância, não há salvação. Nesse culto à ideologia da certeza, abolimos a diversidade pela raiz, instituímos o modo uniforme de ser e, o mais nefasto, cortamos as asas de quem queira voar.

O conservadorismo é normalmente a teoria do dono, de quem está no poder, ou, conforme usamos dizer, de quem “tem a caneta que assina os cheques”. Por vezes, fazemos alguns arranjos na instituição, dando-lhe um ar de modernização ou de inovação: pintamos a escola, trocamos o mobiliário, informatizamos a administração, implantamos tecnologia que usa inteligência artificial para a correção de provas e assim por diante. Mudamos a roupa, mas o manequim permanece o mesmo. É a chamada inovação ou modernização conservadora.

Junto com a dinâmica conservadora convive a dinâmica progressista. Em geral, ela nasce do chão da sala de aula. Germina e cresce, adubada pelo questionamento da prática vigente. Busca construir nova teoria, nova visão de escola, e, em consequência, novas práticas escolares. Essa dinâmica faz o tradicional se julgar, começar a vislumbrar novos horizontes e partir para novo fazer. Quando a nova verdade chega ao dono da escola, tende a instituir nova prática que leva consigo a tendência a se tornar conservadora. De modo resumido: ver a prática, julgar a prática e partir para nova prática, em permanente movimento. Esta é boa estratégia quando pretendemos operar mudanças e construir nova escola. O que move a dinâmica progressista é o permanente questionamento ou, se quisermos, a permanente contemplação ou meditação. Nela, imaginação é mais importante do que conhecimento, cabeça bem-feita importa mais do que cabeça cheia. Conhecimento pode enfeitar por fora, imaginação enfeita e inflama o coração.

Se os frutos produzidos pela terra
Ainda não são
Tão doces e polpudos quanto as peras
Da tua ilusão
Amarra o teu arado a uma estrela
E os tempos darão
Safras e safras de sonhos
Quilos e quilos de amor
Noutros planetas risonhos
Outras espécies de dor

Se os campos cultivados neste mundo
São duros demais
E os solos assolados pela guerra
Não produzem a paz
Amarra o teu arado a uma estrela
E aí tu serás
O lavrador louco dos astros
O camponês solto nos céus
E quanto mais longe da terra
Tanto mais longe de Deus

(Amarra o teu arado a uma estrela — Gilberto Gil)

Se você Gostou, Compartilhe!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Iniciar Conversa
1
Você tem 1 mensagem não lida
Olá, estamos aqui para te ajudar. Inicie uma conversa conosco.