O poeta e músico, José Carlos Capinan, um dos idealizadores do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em entrevista à jornalista Denise Mota, faz um diagnóstico do Brasil e, como médico, indica um remédio para o país.
Antes da receita, o afrodescendente Capinan traz algumas considerações sobre o Muncab como espaço criativo que tem a função didática de lembrar nossas origens, nossos ancestrais e nossas raízes. “E aí, quando a gente come, faz música e pensa, certamente está usando informações e formas de origem do continente africano, que nos deixou um grande legado e que torna a civilização brasileira poderosa, rica e multicultural”.
Um museu — lugar onde habitam as musas — serve para exibir a cultura de um povo, seu modo de interferir e relacionar-se com os outros seres e todo o ecossistema onde habita. É dentro de uma cultura — expressão de nossa humanidade — que apalpamos o solo onde brotamos, examinamos nossa história, entendemos nossas formas de conviver e constatamos nossa condição de seres em permanente evolução.
O Brasil de 2021 é propício para o nascimento de um movimento cultural que nos instigue a pensar o que somos e o que podemos fazer com o que construímos até hoje. “Situações como a nossa provocam crises do pensamento e no comportamento.” Não é uma situação normal porque essa pandemia vem se somar a uma situação sociopolítica um tanto nebulosa, o que deixa todo mundo apreensivo e temeroso, sobre os destinos que podemos tomar.
Mesmo com os avanços da humanidade, estamos tendo grandes dificuldades de dizer o que será amanhã e o que vai acontecer. Tais desafios promovem respostas do inconsciente coletivo e dos indivíduos, na tentativa de criar formas de enfrentamento do que está posto, de modo que aconteça alguma coisa diferente, que ainda não sabemos qual é. Obrigados a pensar dentro de uma situação-limite, precisamos acreditar que vai haver respostas, sejam de pessoas, de grupos, de instituições. “Mas haverá sim. Claro que vamos sair disso.”
A pandemia soprada pelo vento nos convida a abandonarmos a presunção de que possuímos verdades incontestáveis ou certezas absolutas e, ao nos colocar em meio a uma crise mundial, nos mostra que não temos identidade nem valores com os quais enfrentar as mutações que estão sendo produzidas e que nos produzem. Nesse contexto, podemos nos perceber não como “mães” ou “pais” do novo, mas como filhos gerados pelo novo, contanto que consigamos buscar aquilo que nos una, em vez daquilo que nos divida.
“O remédio que eu daria é um elixir de solidariedade. Medicina difícil essa, viu? Os médicos e trabalhadores da saúde são grandes exemplos da solidariedade e do altruísmo que constroem uma cultura de fazer valer a vida. O Brasil já tem essa luta desde séculos passados. Já enfrentamos epidemias de febre amarela, gripes terríveis e outras formas de doenças. Temos exemplos incríveis de como a ciência enfrentou a ignorância, a barbárie e o medo com vitórias e demonstrações de que estavam certos aqueles que acreditaram na vacina. Isso resulta em conhecimento”.
Ainda que nos dias de hoje possamos estar experimentando momentos de desorientação e confusão, de incertezas e contradições generalizadas, somos capazes de converter este nosso tempo em um tempo de busca de alternativas, impulsionados pela energia da vida que sempre nos sugere novas possibilidades no enfrentamento de desafios. Trata-se de um empreendimento coletivo, destinado a criar espaços onde o ser humano tenha condições adequadas ao desenvolvimento de suas infindáveis capacidades de se relacionar com o ecossistema onde coabita e convive. Para fixar ideias, podemos imaginar esses espaços como espaços educadores.
Pensar ou projetar um espaço educador é um exercício de criatividade, não apenas em termos de educação e arquitetura, mas em termos sociais, culturais e políticos. Na verdade, isso ocorre porque um espaço educador é um lugar que abre oportunidades de desenvolvimento cultural e de experimentação sociopolítica, não servindo como tempo e espaço para reproduzir e transmitir conhecimentos já estabelecidos, mas sim como tempo e lugar para a verdadeira criatividade.
Desse modo, projetar um espaço educador significa, antes de tudo, criar um espaço de vida e de futuro. Isso requer a busca compartilhada de caminhos — lugares que possibilitam o “continue andando” — nascida do desejo de dialogar e trocar ideias. A busca de caminhos sugere a constante atitude de pesquisa e o desejo de dialogar nos traz a necessidade de escutar. De modo resumido, podemos pensar um espaço educador como o lugar da pedagogia da pesquisa e da escuta, como ambiente relacional que abre oportunidades para o exercício da criatividade.
Sob essa perspectiva, a qualidade do espaço educador pode ser definida em termos de quantidade, qualidade e desenvolvimento das relações que é capaz de facilitar. Ao assegurar a existência e o fluxo de relações, o espaço educador permite que a pessoa se perceba como sujeito, um sujeito que conhece e aprende no relacionar-se consigo, com os outros e com o Universo. O espaço educador se funda na solidariedade, não na mera solidariedade assistencialista, mas na solidariedade como ação para a liberdade.
Sobre o elixir da solidariedade, vale voltar a ouvir Capinan: “No Brasil, temos uma origem que até hoje nos cobra pedágio o tempo todo. Uma origem brutal, colonial e perversa. O tráfico de escravos deixou marcas de crueldade na civilização brasileira, e a gente na verdade consegue com muito esforço construir uma relação nova com o humano e com o homem.” Essa nova relação com o humano e com o homem é construída em cima do “cimento básico” feito da cultura dos ancestrais, que nos dão força e esperança para seguir em frente. “O Brasil é um país fadado ao sucesso, apesar de não acreditarmos muito nisso. As tentativas de bloquear esse Brasil, inventor de si mesmo, nunca dão certo. A gente sempre acaba vencendo.”
Ao mesmo tempo em que construímos um conceito, estabelecemos também um critério que nos permite avaliar o que definimos. Assim, por exemplo, para qualificamos um espaço como educador, precisamos verificar se efetivamente ele se caracteriza como lugar de pesquisa e de escuta, onde se abram oportunidades para a criatividade. Sob essa lógica, podemos encontrar uma grande quantidade de espaços, reais ou virtuais, que podem se tornar espaços educadores. Na verdade, todo espaço habitado pelo humano, de modo humano, pode ser um espaço educador.
A bula do elixir da solidariedade alerta sobre possíveis efeitos: “Vamos criando descobertas que permitem que o homem continue sua luta de aproximação e ação conjunta com a natureza, e não uma guerra para produzir riqueza e o que for. No candomblé, a gente aprende a lidar com a natureza e se beneficiar do que ela nos oferece. Sem folha, não tem vida. Precisamos entender que somos natureza, uma extensão da natureza, e não oposição. Somos extensão tão criativa como a natureza.” (Ver Capinan: “Medicaria o Brasil com um elixir de solidariedade”. Folha de São Paulo, 22.abr.2021)