lugar educador

A casa e a rua são dois espaços onde acontecem as muitas relações entre as pessoas e, destas, com o contexto cultural, social e econômico, onde estão inseridas. Saindo de casa, o lugar que frequentamos integra o conjunto dos diferentes espaços oferecidos pela cidade: parques, escolas, clubes, igrejas, museus, teatros, entre outros. Cada um desses espaços está fisicamente ligado à Terra, o que o caracteriza como objeto estável. No entanto, como organização viva, cada um deles é munido de movimento, tanto por dentro quanto por fora. É semelhante a um navio em constante movimento de arranjos em seu interior, enquanto navega pelas águas do oceano. Estando a bordo de algo em movimento, conseguimos perceber diferentes paisagens, transformações, fenômenos ou situações.

Com essa ideia na cabeça, examinamos a importância decisiva do ambiente no processo educacional de pessoas. Partimos do pressuposto de que a educação é tarefa que precisa ser assumida pela sociedade inteira e, enquanto isso não acontece, cada um vai cuidando de fazer todo o possível a seu alcance, a fim de transformar os ambientes que frequenta em espaços educativos. Em outros termos, se quisermos, podemos fazer com que os espaços privados ou públicos sejam ambientes ou lugares educadores.

Na busca por traçar o perfil de um lugar educador, nos deixamos guiar pelas falas de crianças. Elas frequentam escolas de Reggio Emilia, uma das 109 províncias da região Emilia Romana, situada ao norte da Itália. O projeto, idealizado pelo pedagogo Loris Malaguzzi, começou a ser implantado logo após o final da Segunda Guerra Mundial. Em suas falas, grafadas em itálico e colocadas entre aspas, as crianças explicitam o que entendem ser um lugar. Desnecessário dizer que, sob a lógica infantil, todo lugar é um lugar educador.

O primeiro lugar educador que habitamos é o útero materno. Se encostarmos o ouvido no útero, certamente escutaremos alguém dizendo que “o melhor lugar do mundo é aqui”. Um lugar educa quando acolhe a vida e abre espaço para que a vida se desenvolva. A vida nos empurra para fora; é quando pulamos para “o colo da mamãe”, sem dúvida o lugar educador por excelência: é lá que bebemos o leite, a água viva que nos faz viver. Em um lugar educador, nos sentimos acolhidos, amados e seguros: é como se fosse um lugar só para nós. Qualquer que seja o nosso Deus, podemos viajar com quem afirma que “o universo é o útero de Deus” ou com aquele que leva a certeza de que “Deus nos carrega no colo”: desvendamos, assim, o lado feminino de Deus ou, se quisermos, o lado materno do Universo.

Do colo da mamãe, saímos para explorar o ambiente. “Conhecemos o lugar pelo ar”, o ar que respiramos e que nos inspira. Estamos acostumados com a metáfora do homem feito de barro, animado pelo sopro do Criador. Essa fábula nos traz a ideia escondida no termo psiquê, usado pelos gregos para indicar vida, no sentido de respiração ou formado pelo vento: é o sopro da vida. (A divindade Psique é uma representação do que costumamos chamar de alma, mente ou espírito.) Um lugar educador nos faz e nos deixa respirar, sempre nos traz bons ventos. Gostamos mesmo é de casa arejada… Muitas vezes, nos ajoelhamos diante do nosso Deus e, distraídos, não reparamos que nosso joelho comprime o pescoço de outros, impedindo-os de respirar.

Da janela da casa, vamos para a cidade, “o lugar onde eu assustei uns passarinhos, onde tem aquelas estátuas falsas de leão”. Um lugar educador dá asas a nossa imaginação, nos traz a sensação de leveza e nos desafia a voar: é uma lição de desapego e o despertar de nossas potencialidades. Um lugar educador esculpe obras de arte, reveladoras de nossa cultura, e nos possibilita andar no mundo das representações ou símbolos da linguagem visual. Além de desenvolver nossa percepção estética, é uma forma de nos ajudar a separar o real do virtual, o falso do verdadeiro.

Você entra no lugar… e depois disso o seu corpo decide se recebe ele ou não”. Além de estar preparado para receber, o lugar educador é aquele que é recebido: quem decide receber é o corpo. Não adianta muito prepararmos uma bela casa, feita conforme nossa arquitetura, e a entregarmos para uma tribo habituada a morar em casas redondas, porque seus membros acreditam que os espíritos maus moram nos cantos. Um lugar educador é plantado em um contexto cultural: precisa estar atento para não representar rupturas do tecido social e, sobretudo, ser um espaço que incorpore a cultura local e traga conforto e prazer.

Na sua candura, “você anda um pouquinho para descobri o que tem lá”, a criança explica o que vem a ser um lugar educador: ele desperta curiosidade e faz andar rumo à descoberta. Podemos desenvolver em nós a capacidade de escutar a fala das crianças que, quase sempre, nos apontam caminhos. Um lugar educador está atento às perguntas e às necessidades de seus frequentadores: esse é o lado político de todo ambiente, por vezes, o aspecto mais falado sobre nosso projetos e, também, o mais ignorado. É o aspecto que responde ao “para quem e para quê” implantamos os espaços.

Você pode ouvir o barulho de um lugar, uma árvore, por exemplo, nos mostra o vento.” Um lugar educador nos ajuda a perceber as muitas vozes que inundam o Universo. Ao escutá-las, poderemos desvelar mensagens de cuidado com a Terra, nossa casa comum. É o acordar da alma a sugerir que “para ouvir um lugar, você precisa chamar o seu cérebro”. Podemos, por meio da escuta, fazer dos muitos barulhos encantadoras sinfonias, porque “quando faço um silêncio bem grandão, eu consigo ouvir o silêncio”.

Depois de ouvir as falas das crianças, vamos verificar como a escola Reggio Emília percebe um lugar educador. A pedagogia defendida pretende que a criança seja protagonista do processo educativo e admite que aos adultos cabe se postarem como aqueles que escutam as crianças e reconhecem as múltiplas potencialidade de cada uma delas: é a pedagogia que se fundamenta na visão da criança como portadora de “cem linguagens”. Um lugar educador é construído em torno de um núcleo de conceitos.

Em 1946, no Vilarejo de Vila Cella, trabalhadores e comerciantes que, em consequência da guerra haviam perdido praticamente tudo, se uniram a fim de construir uma escola para crianças pequenas. Os primeiros recursos foram obtidos com a venda de um tanque de guerra, seis cavalos e três caminhões, deixados pelos alemães. O empreendimento envolveu toda a comunidade, unida pelo desejo de reconstruir a própria história e pela vontade de oferecer uma vida melhor para os filhos. Tal situação, que podemos ver como fator fundante, confere à escola Reggio Emilia o carisma de espaço nascido e enraizado na determinação de famílias de, juntas, construírem um mundo melhor por meio da educação. Um lugar educador está inserido em um contexto político e econômico, utiliza os recursos que tem à disposição e tem por finalidade melhorar as condições de vida das pessoas.

Ao longo dessa experiência, já com mais de setenta anos, a escola Reggio Emilia foi se instituindo como organização viva. Adota como uma de suas estratégias de trabalho a análise dos dados obtidos por meio da documentação das ações e processos implantados. É a partir dessa análise, feita com a escuta de pais, professores e crianças, que a escola se renova e permanece em movimento. Para agir como lugar educador, o ambiente da escola tem de ser flexível: precisa passar por modificações frequentes por parte das crianças e dos professores, a fim de se manter atualizado e abrir oportunidades para que cada criança seja protagonista na construção do próprio conhecimento. Por ser um lugar educador, todas as coisas que o rodeiam e que são usadas pelas pessoas na escola — os objetos, os materiais e as estruturas — são elementos que condicionam e que são condicionados pelas ações das crianças e dos adultos que nele se movem. Um lugar educador é munido de um permanente movimento interior feito de ações, avaliações e renovações.

De acordo com Loris Malaguzzi, mentor da escola Reggio Emilia: “Valorizamos o espaço devido a seu poder de organizar e promover relações prazerosas entre pessoas de diferentes idades, criar um ambiente belo, realizar mudanças, promover escolhas de atividades e pelo seu potencial de incitar todos os tipos de aprendizagem social, afetiva e cognitiva”. Todo esse lugar educador contribui para uma sensação de bem-estar e de segurança das crianças. Um lugar educador tende a ser “um tipo de aquário que reflete as ideias, os valores, as atitudes e a cultura das pessoas que vivem dentro dele”.

Um lugar educador deixa transparecer que é “um lugar onde os adultos geraram a qualidade do ambiente”, movidos pela determinação de dele fazer um espaço de acolhida e, ao mesmo, um espaço falante desejoso de ser ouvido. No caso das escolas Reggio Emilia, cada unidade se mostra cheia de luz e variedade de espaços, onde adultos e crianças trabalham com entusiasmo e respiram um ar de alegria. Cada escola mostra como os professores, os pais e as crianças, trabalhando e brincando juntos, criam um espaço único, um espaço que reflete suas vidas pessoais, a história de sua escola, as muitas camadas de cultura, em processo planejado de ações escolhidas.

Por estar inserido em um contexto, um lugar educador aborda seus arredores e busca se instituir como elemento que abre oportunidades para a participação de adultos e crianças. Torna-se vetor de solidariedade consciente e acena para o cuidado de nossa casa comum, atitude indispensável para o futuro da democracia e da humanidade. Está em nossas mãos a construção de um mundo melhor, para nós e nossos filhos, viajantes da nave Terra.

Depende de nós / Quem já foi ou ainda é criança
Que acredita ou tem esperança / Quem faz tudo pra um mundo melhor

Depende de nós / Que o circo esteja armado
Que o palhaço esteja engraçado
Que o riso esteja no ar / Sem que a gente precise sonhar

Que os ventos cantem nos galhos / Que as folhas bebam orvalhos
Que o sol descortine mais as manhãs

Depende de nós / Se esse mundo ainda tem jeito
Apesar do que o homem tem feito / Se a vida sobreviverá

(Depende de nós — Ivan Lins / Vitor Martins)

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