Uma de minhas assessoras corria os olhos sobre alguns volumes espalhados sobre o balcão de uma livraria. Ao ler um dos pequenos capítulos de um livro, ficou admirada de encontrar ali escrito algo muito importante que gostaria de dizer a seu namorado.
– Embrulhe para mim, por favor! Embrulho para presente!
Coração palpitando, mandou entregar o presente, acompanhado de bilhete beijado de juras de amor.
Depois de três dias, ficou surpresa ao ver o presente, de capa bonita, dentro de um porta-retrato, servindo de enfeite na sala de visitas do apartamento de seu bem-querer.
Vamos aproveitar dessa frustração amorosa para pensar no livro como tecnologia da fala ou da comunicação. Liber, palavra latina para indicar livre, dá origem a vários outros termos, tais como, por exemplo, livro, livrar e liberdade. O contrário de livre é escravo, que traz a ideia de amarrar, prender, subjugar ou tirar a liberdade. Para fixar ideias, podemos considerar, à moda da sociedade grega, livre como o sujeito que fala e escravo como o objeto que fala. Sob essa perspectiva, livro vem a ser uma tecnologia que nos ajuda a falar, seja como sujeitos seja como objetos.
Já vai longe o tempo quando os comunicados de reis e generais andavam a cavalo, escritos em cascas de árvore, papiros ou em couro de animais; conseguimos colocar no papel as cartas, levadas pelo correio, e encadernar em livros nossos dramas, romances e poesias; a notícia, antes carregada por maratonista, montou na garupa de elétrons e, hoje em dia, corre mundo em velocidade da luz. O ensino à distância, que viajava a pé, de carro, navio ou avião, agora chega direto em celulares, tablets e notebooks, trazendo junto o professor.
Criamos tecnologias de base computacional que nos mergulham na era da informática (a técnica de informar) e possibilitam a comunicação, quase instantânea, por meio de áudio e vídeo, da escrita, do som e da imagem. Com o auxílio dessas tecnologias, montamos páginas na Internet e nelas podemos ler os mais diversos livros que ganhamos de presente e que andam espalhados por todo o universo. Essas tecnologias nos permitem explorar o interior dos corpos, viajando no espaço de três dimensões.
Em geral, as tecnologias colocadas a nossa disposição são artefatos políticos, no sentido de que são fabricadas para determinada finalidade. Cabe ao usuário empregá-las de modo adequado: o mesmo fósforo feito para acender um fogão pode ser usado para incendiar um ônibus. As tecnologias da fala ou da comunicação também têm essas qualidades: são artefatos políticos e dependem do uso que delas fazemos.
Podemos nos encantar com a capa do livro, sem o abrir e nunca descobrir as mensagens e informações esculpidas em suas páginas: o livro vira objeto de enfeite em algum canto da casa. Podemos, ainda, abrir o livro e percorrer suas páginas à cata de novidades. Somos tentados a fazer o mesmo quando usamos as tecnologias de base computacional: ficamos pulando de um lugar para o outro, sem prestar muita atenção às mensagens que nos chegam. Colhemos muitas notícias e informações que, em excesso, deixam de ser informação e aceleram nossa ansiedade por virar para outra página. É uma boa estratégia para ficarmos presos à letra e nos construirmos como objetos que falam, repetidores das ideias de outros, fomentadores de rodas de fofoca ou divulgadores de fake news.
Para ir além da capa e da letra, podemos olhar para o livro como texto andante que vai nos mostrando novas formas de ver e de andar. Assim, imitamos as plantas que aprofundam suas raízes na terra em busca de sustentação e de nutrientes que as fazem crescer bem firmes. Também, dessa maneira, nos espelhamos nas tecnologias que nos levam a andar dentro de imóveis e nos possibilitam explorar o interior dos corpos. Penetrar nas páginas de um livro é experiência que pode nos alimentar como sujeitos que falam e dar consistência a nossa voz. Mergulhar em um livro é experiência que pode nos levar a andar por dentro do mundo das ideias e descobrir obras-primas que dormem, escondidas em blocos de pedra ou em troncos de madeira. É bom modo de nos construirmos como sujeitos de fala articulada e nos constituirmos como autores da História.
ERA UMA VEZ
Era uma vez
O dia em que todo dia era bom
Delicioso gosto e o bom gosto das nuvens serem feitas de algodão
Dava pra ser herói no mesmo dia em que escolhia ser vilão
E acabava tudo em lanche
Um banho quente e talvez um arranhãoDava pra ver, a ingenuidade, a inocência cantando no tom
Milhões de mundos, e universos tão reais quanto a nossa imaginação
Bastava um colo, um carinho
E o remédio era beijo e proteção
Tudo voltava a ser novo no outro dia
Sem muita preocupaçãoÉ que a gente quer crescer
E quando cresce quer voltar do início
Porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partidoÉ que a gente quer crescer
E quando cresce quer voltar do início
Porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partidoDá pra viver
Mesmo depois de descobrir que o mundo ficou mau
É só não permitir que a maldade do mundo te pareça normal
Pra não perder a magia de acreditar na felicidade real
E entender que ela mora no caminho e não no finalÉ que a gente quer crescer
E quando cresce quer voltar do início
Porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partidoÉ que a gente quer crescer
E quando cresce quer voltar do início
Porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partidoEra uma vez…
(ERA UMA VEZ: Keylla Cristina dos Santos Batista)