O que eu aprendi da leitura dos dois primeiros capítulos do Alcorão Sagrado foram as palavras Iqra, que significa “leitura”, e nun wal-qalam que significa “pela caneta”.
Assim, como eu disse no ano passado nas Nações Unidas: “Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo.”
Hoje, em metade do mundo testemunhamos acelerado progresso, modernização e desenvolvimento. No entanto, há países onde milhões ainda sofrem dos antiquíssimos problemas da fome, da pobreza, da injustiça e de conflitos. (Malala Yousafzai — Discurso na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel da Paz)
Na companhia de Malala, vamos dar uma volta pelo mundo da leitura e da caneta. Levamos a caneta vestida de entropia e a leitura com roupa de sintropia. Para fixar ideias, pensamos na energia gasta para aquecer o filamento de uma lâmpada (entropia) e na energia que, por esquentar o filamento, se transforma em luminosidade (sintropia).
Podemos associar caneta ao pincel utilizado pelo pintor para colocar na tela a mistura de traços e cores que, aos poucos, adquire forma: desse gasto de tempo e esforço, nasce uma obra de arte que se eterniza e encanta. A caneta pode ser vista como o cinzel usado pelo escultor para dar forma a um pedaço de madeira: da energia gasta no tirar as sobras, brota o brilho da arte que faz a alma viajar. Nessas duas situações, o artista imprime, na tela ou na madeira, a sua marca: da transpiração do autor (entropia), nasce a inspiração para o admirador (sintropia).
Nós usamos a caneta para escrever: em vez de tela, temos uma folha de papel ou uma página da internet; em vez de pedaço de madeira, temos um quadro ou um site. Escrever exige esforço para organizar as letras em palavras e organizar as palavras em frases: dessa transpiração, surge a obra de arte, o texto. Sob essa perspectiva, pintura e escultura são textos. Nós podemos até fazer uma lista imensa de textos: floresta, árvore, cidade, clube, país, carro, Terra, rios, nosso corpo, os outros… Ajuntando muitos textos, nós fazemos um livro! O Universo inteiro é feito de uma porção de textos, todos eles tecidos de acordo com o princípio incondicional de amor e de cooperação! Podemos mesmo dizer que um texto é a fala de cada ser ou fenômeno.
Quem faz um texto pensa, certamente, no leitor e que esse leitor vai ler e compreender o que foi escrito. É como alguém que fabrica uma bicicleta pensando em quem vai usá-la: por certo, o fabricante vai caprichar para o ciclista ficar bem satisfeito com o produto. Se nós acreditamos que tudo pode ser visto como texto, então é vital aprender a ler! Mais do que isso: todo mundo é capaz de aprender a ler e todo mundo tem direito de aprender a ler. O aprendizado da leitura é feito por meio da leitura de pequenos textos: um livro, um animal, uma árvore, o corpo, o alimento, a canção, a casa, a cidade, … São essas pequenas leituras que formam um processo de aprendizagem cujo destino é a formação de um excelente leitor. Assim como um texto pode ser visto como a fala, a leitura pode ser considerada como a escuta.
Nós aprendemos a ler e a escrever muitos textos e contamos, para isso, com muitos ajudantes, como, por exemplo, a família e a escola. Na família, nós aprendemos a ler as relações entre pais e filhos: elas se mostram no cuidar e ser cuidado, no gostar e ser gostado, e respondem pela criação do sentimento de fazer parte e da sensação de ser único e importante. É a família que nos ensina a escutar e a falar: nela aprendemos a língua materna.
A ciência se dedica ao estudo dos fenômenos e seres. É movida pela curiosidade de saber a que leis obedecem, como funcionam e para que servem esses acontecimentos. Dito de outra forma, a ciência quer aprender a ler todos os textos impressos no mundo. A escola corta partes das ciências e as traz para dentro da sala de aula, de modo que o estudante consiga compreender os muitos textos encontrados no Universo. Assim, o professor, baseado na ciência. precisa ajudar o estudante a ler e escrever textos.
A Cultura revela a forma de as pessoas lidarem com a Terra e os recursos que ela coloca à disposição. Nesse sentido, Cultura é o modo como as pessoas cuidam da casa onde moram: com isso, elas vão construindo um texto que nós chamamos de História da Humanidade. A escola faz alguns recortes da Cultura e os leva para o interior da sala de aula de modo que eles possam ser assimilados pelo estudante. O professor, baseado na História da Humanidade, precisa ajudar o estudante a ler o espaço cultural onde convive. A escola pode nos ajudar a ler e a escrever, a escutar e a falar.
Quem aprende a ler é levado a escrever, assim como quem escuta tende a falar. Desse modo, todo leitor tende a ser autor; quem sabe escutar tende a ter voz. Na sabedoria do Alcorão Sagrado, quem domina a leitura se torna capaz de usar a caneta. Não precisa nem dizer que nós nascemos munidos de todas as canetas possíveis: elas aparecem até nós em forma de tecnologias. Com essas canetas podemos escrever todos os textos que quisermos! Se toda criança tiver oportunidade de aprender a ler (escutar) e a escrever (falar), haverá no mundo Paz e Vida em abundância: não haverá fome, nem pobreza, nem injustiça e nem conflitos.
A criança é feita de cem
A criança tem cem mãos, cem pensamentos
Cem modos de pensar, de jogar e de falar.
Cem modos de escutar as maravilhas de amar
Cem alegrias para cantar e compreender
Cem mundos para descobrir
Cem mundos para inventar
Cem mundos para sonhar!
A criança tem cem linguagens
Mas roubaram-lhe noventa e nove.
A cultura e a escola lhe separaram a cabeça do corpo
Dizem-lhe de pensar sem as mãos
De fazer sem cabeça, de escutar e de não falar
De compreender sem alegrias
De amar e maravilhar-se só na Páscoa e no Natal
Dizem-lhe de descobrir o mundo que já existe
E de cem (mundos), roubaram-lhe noventa e nove
Dizem-lhe que o jogo e o trabalho
A realidade e a fantasia, a ciência e a imaginação
O céu e a terra, a razão e o sonho
São coisas que não estão juntas
Dizem-lhe: que as cem não existem
A criança diz: ao contrário, as cem existem
(Ao contrário, as cem existem — Loris Malaguzzi, mentor da Escola de Reggio Emilia)