formando leitores

A palavra página vem de pagus, um termo latino usado para designar um pedaço de terra, cercado e cultivado por alguém: separado como propriedade particular, o pagus era trabalhado de modo a prover seus donos de víveres necessários à sobrevivência de seus donos. Vem daí, possivelmente, a ideia de se chamar uma página da internet de site (sítio).

A metáfora serve para descrever alguns dos aspectos presentes na leitura de textos escritos em páginas de livros físicos: as páginas são delimitadas, nelas estão plantadas palavras que, organizadas em frases, expressam uma cultura, um jeito de viver. Por meio da palavra escrita, o autor comunica ideias, crenças, valores e as percepções sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo.

Quando alguém cuida de um sítio, certamente pensa nos frutos que dele brotarão e, também, nas muitas pessoas que dele poderão usufruir. Pode-se pensar em um sítio como meio de modificar a forma de viver de quem dele se utiliza. De maneira semelhante, quem escreve um texto e nele semeia ideias, por certo, espera e deseja que alguém o leia e dele tire proveito. O texto escrito serve, pois, de ponte que liga o escritor ao leitor, o que torna escrita e leitura duas tecnologias intimamente ligadas ou, visto de outro modo, duas páginas de uma mesma folha.

Saber ler e saber escrever são duas das habilidades mais importantes e fundamentais que o ser humano pode desenvolver. É a partir da leitura que a pessoa fabrica a própria teoria e cultiva seu modo próprio de ver o universo onde vive, bem como chegar a conclusões sobre seu mundo e a cultura da sociedade em que está incluída. Sob essa perspectiva, a leitura se apresenta como um poderoso instrumento de desenvolvimento de competências, tanto acadêmicas quanto socioemocionais. Feitas as necessárias adaptações, pode-se dizer o mesmo da escrita.

Para fixar ideias sobre o processo de formação de leitores, pode-se pensar nele como processo de construção de conhecimento. A palavra conhecimento é feita de dois termos latinos: cum, que significa junto com, e gnoscere, que significa aprender, experimentar. Desse modo, por natureza, conhecimento humano é algo que só tem sentido quando construído junto com os outros.

A construção do conhecimento começa com a observação de dados, tudo aquilo que pode ser sentido pelo corpo. Para conhecer, precisamos olhar, ouvir, cheirar, apalpar, saborear ou, então, precisamos de uma tecnologia para fazer isso por nós. É parecido com o que acontece no computador que, por meio dos sensores, colhe dados.

Ao atribuir significado aos dados, transformamos os dados em informações. Transformar dado em informação é uma tarefa realizada pela inteligência (palavra do latim, feita de inte, dentro, e leggere, ler; significa a capacidade de ler o que está por dentro dos dados). No caso do computador, existem os softwares que podem atribuir significado aos dados: são os algoritmos.

De posse das informações, passamos a enxergar uma forma de fazer e somos levados a agir. Com base nessas ideias, pode-se dizer que o conhecimento é uma sopa de dados, informações e ações. Para ilustrar, segue um exemplo.

Ao medir a temperatura do filho, a mãe vê o termômetro marcando 38. Ela sabe que este dado se refere a alguém cuja temperatura normal deve ser de 36 graus. De posse desta informação, a mãe liga para o pediatra e, seguindo sua receita, faz a criança tomar algumas gotas de Alivium, um remédio para febre. 38 é um dado; ligar o dado à temperatura de alguém é transformar o dado em informação e, por fim, providenciar que o filho tome um medicamento é ação.

Ao ler um livro, encontramos signos, palavras, figuras: são os dados. Para ler, precisamos atribuir significado ao que está escrito e, assim, transformar dados em informações. Entendidas as informações, podemos ver um novo ou melhor modo de fazer e somos levados a agir. As ações provocadas pela leitura de um livro podem se traduzir, dentre outras maneiras, por uma mudança de percepção, uma sugestão de como fazer melhor, uma nova maneira de se expressar ou uma visão ampliada a respeito do assunto abordado pelo escritor.

Sob essa perspectiva, trabalhar com a formação de leitores é trabalhar com a formação do pensamento ou, como é usual dizer, com a formação de cabeças bem-feitas. De acordo com Vygotsky (1896 -1934), o pensamento e a linguagem operam juntos para a formação de ideias e para o planejamento de ações e, depois para a execução, controle, descrição e discussão desta ação. (Cf. VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1998. pp. 132–133)

Para Magda Becker Soares, doutora em Educação e com extensa bibliografia sobre a formação de leitores, professora aposentada da UFMG, “leitura não é um ato solitário; é interação verbal entre indivíduos e indivíduos socialmente determinados”. Dito de outra forma, leitura é algo que só tem sentido quando lemos junto com outros. A interação entre pessoas é feita por meio da língua, um complexo sistema que representa uma identidade cultural. É preciso saber ler e escrever para interagir de modo autônomo com essa cultura: é o jeito de se sentir parte da sociedade e nela ter voz e vez .

Conforme discutido pela mesma autora, sob a perspectiva da dimensão de letramento (leitura considerada como tecnologia), a leitura literária é um conjunto de habilidades linguísticas e neuropsicológicas que supõem a habilidade de decodificar palavras escritas, compreender textos escritos, refletir sobre o significado do que foi lido, tirar conclusões e fazer julgamentos sobre o conteúdo. (Cf. SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed., 5. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2002. pp.68–69)

Com base nesses conceitos, pode-se estabelecer que a formação de leitores deve passar pelas seguintes etapas: decodificação, compreensão, interpretação e incorporação.

01. Decodificação

Primeiramente, o leitor decodifica os símbolos escritos. É uma primeira leitura, um tanto superficial, que, apesar de incompleta, precisa ser feita: funciona como uma leitura de dados, como se fosse o reconhecimento do terreno, no caso, um texto. É um momento em que o leitor deve anotar as palavras desconhecidas para achar seu significado, passo importante para passar para a próxima etapa, a compreensão do que foi lido.

Na decodificação, é estabelecida a ligação entre o reconhecimento do material linguístico com o significado que ele fornece. Apenas a decodificação que, por vezes, se reduz à mera identificação visual de palavras, não é suficiente para atingir o nível de significado pretendido.

02. Compreensão

É a fase de atribuir significado aos dados, captar o sentido do texto lido: saber do que se trata, entender o que o autor pretende dizer, ser capaz de explicar com as próprias palavras o que se está lendo. A compreensão, fazer dos dados informações, passa pela interação entre o leitor e o texto: ela só ocorre se houver afinidade entre o leitor e o texto; se houver a intenção de ler, a fim de atingir determinado objetivo. Operar com o significado de um objeto (no caso, um texto ou palavras) leva ao pensamento abstrato.

03. Interpretação

É perceber a sequência de ideias ou acontecimentos que estão no texto. É basicamente responder à pergunta: “o que o autor quer me dizer com isso?”. A interpretação é aquilo que o leitor deve fazer com os textos que lê, para que sejam efetivamente compreendidos: para interpretar é preciso compreender. É como algo que compara o que o autor propõe com aquilo que o leitor faz e o empurra para uma nova forma de olhar o mundo. Podemos ver a interpretação como a atribuição de significado de ações: operar com o significado da ação leva ao desenvolvimento da vontade e da capacidade de fazer escolhas.

04. Incorporação

A última etapa do processo de leitura é a incorporação, que diz respeito à retenção ou armazenamento das informações mais importantes na memória de longo prazo. Essa etapa pode se concretizar em dois níveis: após a compreensão do texto, com o armazenamento de sua temática e de seus tópicos principais; ou após a interpretação, em um nível mais elaborado.

É nessa etapa que o leitor deve ser capaz de incorporar as informações trabalhadas nas etapas anteriores e aplicá-las: fazer analogias, comparações; reconhecer o sentido de linguagens figuradas ou subentendidas. Incorporar significa, sobretudo, ser capaz de aplicar em outros contextos o que foi lido, de fazer um paralelo com o cotidiano e de fazer suas próprias análises críticas. A incorporação tem a ver com o desenvolvimento da criatividade e da capacidade para agir.

Costumamos chamar o mundo em que vivemos hoje de “mundo da informação”. Embora não deixe de ser o admirável mundo novo, a leitura feita em aplicativos de base computacional pode criar uma ansiedade muito grande, porque o usuário fica o tempo todo correndo atrás de novidades. Há quem afirme que o objetivo intencional desses aplicativos é a dispersão. De acordo com Zvetan Todorov, um teórico búlgaro, “muita informação mata a própria informação”. Em outros termos, como afirma Ilan Brenman, doutor em Educação e autor de inúmeras obras de literatura infantil, “a sociedade anda tão macacal, ela pula de galho em galho nas informações, que o conhecimento acaba sendo sempre muito superficial”.

O livro de papel dá uma parada nessa correria, ele para essa avalanche de informações. O livro requer silêncio e reflexão. Na leitura de um livro, quem produz a imagem é a mente, a imagem não vem pronta na tela do computador, da TV ou do cinema. Nesse silêncio compartilhado com as palavras é que o leitor se projeta, é nessas lacunas que vai poder respirar e pensar sobre a vida, pensar sobre si mesmo.

Por que o mundo é assim como é? Por que você pensa como pensa? Perguntas desse tipo são comuns quando você começa a questionar a vida e a sociedade, ou seja, quando começa a desenvolver seu senso crítico. O mais incrível da leitura é que, nos introduzindo a realidades e épocas diferentes, ela acaba suscitando reflexões que talvez não teríamos se ficássemos sempre presos a nosso cotidiano e a nossa rotina. Ler abre a mente e isso pode levar a pessoa a ser cada vez uma pessoa melhor.

Acreditar na formação de leitores, é acreditar na pessoa humana. Por estar em permanente evolução, a pessoa humana “carrega em si o dom de ser capaz e ser feliz”. Cuidar desse dom coloca em movimento a criatividade, competência por meio da qual “cada um de nós compõe a sua história”. Esse processo de compor a própria história se caracteriza como processo de constante aprendizagem, condição que faz o aprender ser a mesma coisa que o viver.

Para terminar, o Talmud (coleção de livros milenares da cultura judaica): A pessoa que faz caridade o tempo todo é aquela que adquire livros e os empresta para que outros os leiam.

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