Estudos da neurobiologia mostram que, sem as estruturas do ouvido interno, nenhum vertebrado terrestre, inclusive os humanos, conseguiria andar, voar, escalar ou correr por aí. Cada uma dessas estruturas é feita dos canais semicirculares, três tubinhos interconectados, que lembram rosquinhas feitas de osso. Eles abrigam um líquido, a endolinfa, e estão acoplados a áreas cheias de células que funcionam como sensores. Conforme a cabeça de uma pessoa ou animal se mexe, o líquido também se movimenta dentro dos canais semicirculares, e os sensores celulares vão detectando as mudanças e permitindo ajustes finos no equilíbrio corporal.
Antes de nascermos, vivemos nove meses no corpo de nossas mães. Nesse primeiro espaço educador onde moramos, vivemos cercados de diálogos e interações biológicas, nos desenvolvemos e crescemos como ouvintes. Escutar torna-se, assim, uma atitude natural que envolve sensibilidade a tudo que nos conecta aos outros e a tudo de que precisamos para viver nossas vidas de humanos. Desse modo, o escutar — que se assemelha ao ato de escavar — está em nossa base biológica de humanos e sustenta nossa natural necessidade de movimentação, o desejo e a habilidade de procurar pelo significado da vida e de nós mesmos.
Em todos os espaços onde habitamos e nos movemos, o escutar faz brotar perguntas: “Por quê?”, “Como?”, “O quê?” ou “Para quê?”. São perguntas-chave que estão na base de nossas relações e interações em espaços educadores. À medida que escavamos as várias camadas que encobrem esses espaços, vamos formulando novas perguntas que, por sua vez, nos desafiam a novas escavações. Essa é uma escuta aberta e sensível à necessidade de ouvir e ser ouvido e à necessidade de escutar com todos os sentidos, não somente com os ouvidos.
Os sentidos funcionam como sensores que nos possibilitam captar as muitas mensagens tecidas e exibidas nos diferentes espaços. Eles estão no início de nossa coleta de dados e nos movem na busca de significados, o que envolve dar uma interpretação — um sentido à mensagem — a que podemos chamar de compreensão. Vista dessa forma, a escuta ocorre dentro de um “contexto de escuta”, onde se aprende a ouvir e narrar, e cada indivíduo sente-se legitimado para representar e oferecer interpretações de suas teorias por meio de ação, emoção, expressão e representação, usando símbolos e imagens (as “cem linguagens”). A compreensão e consciência são geradas por meio do compartilhamento e do diálogo.
Tanto para adultos como para crianças, compreensão significa conseguir desenvolver uma teoria interpretativa, uma narrativa que dá significado ao mundo onde coabitamos e convivemos. Essas teorias, construídas por cada sujeito no relacionar-se com os espaços educadores, revelam como pensamos, questionamos e interpretamos a realidade, além de nosso relacionamento com os outros e conosco. Construir e expressar nossas teorias com os outros, ao mesmo tempo que nos ajuda a construir nosso mundo, contribui para que percebamos o mundo como nossa casa comum e o transformemos em nosso espaço educador maior.
Além disso, compartilhar teorias é uma resposta à incerteza e serve como expressão de nossa solidariedade. Para existir, qualquer teoria, precisa ser expressa, comunicada e ouvida. Tal percepção de teoria está na base da “pedagogia da relação e da escuta”, capaz de fazer de todo espaço um espaço educador. Assim, a capacidade de escuta e expectativa recíproca, que permite a comunicação e o diálogo, é qualidade humana presente nas crianças e nos adultos. Desde o nascimento, desenvolvemos essa atitude de fazer parte, de construir nossa identidade junto com a identidade dos outros. É nosso processo humano de aprendizagem humana.
Nesse processo de aprendizagem, vamos descobrindo que a aprendizagem é coletiva, colaborativa e democrática. O escutar supõe assumir a responsabilidade pelo que é compartilhado, uma atitude relevante para que o ser humano construa sua própria identidade. Sob essa lógica, escutar significa estar aberto às diferenças, reconhecer valor no ponto de vista do outro e acolher suas interpretações. Dito de outra forma, escutar é ação que envolve dar significado e valor às perspectivas dos outros; é uma forma de receber os outros e suas diferenças, ou seja, uma forma de receber diferentes teorias e perspectivas.
Conforme podemos experimentar, escutar é tarefa complexa e difícil, sobretudo porque estamos mergulhados em muitos espaços de referência, reais ou virtuais: família, escola, meios de comunicação, grupos sociais, entre outros. É nesses espaços que nos colocamos como ouvintes, uma tarefa multissensorial que fazemos de corpo inteiro. Além disso, escutar exige profunda consciência e suspensão de nossos julgamentos e preconceitos. Requer que abramos mãos de nossas precárias certezas e valorizemos o desconhecido, em constante abertura para a diversidade e a força de evolução da vida.
A mais disso, escutar demanda tempo. Quando realmente escutamos, nós entramos no tempo do diálogo e da reflexão interna, um tempo interior que é composto do presente, mas também do passado e do futuro, e, portanto, está fora do tempo cronológico. É um tempo cheio de silêncios. No escutar, base de qualquer relação, a aprendizagem ganha forma na mente das pessoas e, por meio da representação e da troca, torna-se conhecimento e habilidade. Desse modo, escutar nos remove do anonimato, nos legitima, nos faz ter voz e nos dá visibilidade. Dessa forma, escutar enriquece tanto aquele que escuta quanto aquele que produz a mensagem.
O “Conhece-te a ti mesmo!”, colocado no pórtico do templo de Apolo, em Delfos, e o “Amarás ao próximo como a ti mesmo!”, mandamento para quem pretenda cumprir o “Amarás a Deus sobre todas as coisas!”, nos levam a perceber que, para escutar o outro, é essencial que escutemos cuidadosamente a nós mesmos, ao que somos e ao que queremos. Às vezes, passamos tão rápido por nossas vidas que perdemos a coragem de nos conhecermos: O que você está fazendo? Aonde você está indo? Essa atitude de escutar e de estar atento ao que está dentro de nós, ao mesmo tempo que ajuda na construção de nossa própria identidade, nos possibilita escutar e estar atentos ao que vai no interior dos outros.
Em tempos de incontinência verborrágica, tagarelice, gritaria, barulho, ruído, estridência, intolerância, indiferença e ignorância, o que mais precisamos é de quem nos escute com profundidade. Como dizia Rubem Alves, “não aguentamos ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite, como se o que ele diz não fosse digno de atenção e respeito”.
“Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. […] Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta bonito. A arte de amar e a arte de ouvir estão intimamente ligadas. Não é possível amar uma pessoa que não sabe ouvir. Os falantes que julgam que por sua fala bonita serão amados são uns tolos. Estão condenados à solidão. Quem só fala e não sabe ouvir é um chato!” (Rubem Alves, no livro “O amor que acende a lua”)
A prática da escutatória, a arte de nos colocarmos como ouvintes, balança nossos conceitos e teorias (nossa endolinfa mental) e nos possibilita incorporar uma sintonia fina com toda a biosfera, o espaço educador morado pela vida. Com ela, podemos nos sentir bem dentro do Universo, esse infinito Útero de Deus!
A menina Denise queria ser arqueóloga e a menina Cristina, paleontóloga. […]
De um jeito ou de outro, nós duas percebemos que não eram só objetos perdidos no tempo que nos atraíam. Gostávamos muito de escutar as pessoas e as histórias deste e de outros tempos e lugares.
Eu, Denise, na medida em que crescia, fui ouvindo também as dores dos narradores das histórias e acabei tornando-me psicóloga. Eu, Cristina, fiz Faculdade de História e me aproximei da educação. Fui ouvir as crianças e descobrir o que elas pensavam do mundo.
Afinal, escutar é também escavar… E, quando nos conhecemos, tínhamos já a certeza de que vivemos sobre uma terra fértil com camadas superpostas que guardam vestígios do tempo — vestígios que podem ser conhecidos, pesquisados e decifrados. É esse solo de memórias que, escavado, nos ajuda a viver o tempo presente.
Foi assim de mãos dadas com os sonhos das meninas que fomos, que seguimos nossa caminhada como pesquisadoras, percebendo-nos como arqueólogas de memórias e escavadoras das miudezas e das delicadezas da vida. Escavar neste cenário é, quase sempre, trazer à superfície aquilo que estava escondido, nutrindo, dessa forma, nossa sensibilidade e humanidade.
(Nathercia Lacerda, no livro “A casa e o mundo lá fora”)