Vestido de dinossauro, o de três anos corre atrás do Vision, de seis. Cena cortada, é o Vision que persegue o dinossauro. Ora um é caça e o outro, caçador, em revezamento que parece não cansar. Terminam a brincadeira quando, sem fantasias, têm de seguir um “Já para o banho!”… e um ensaboar o outro…
Vamos aproveitar nossos heróis para olhar o brinquedo como tecnologia de posse e, também, de aliança. Começamos por lembrar a busca incessante de tecnologia, nosso jeito de, a partir do conhecimento, fazermos artefatos que prolongam nossos sentidos e nos ajudam a satisfazer nossas necessidades.
Do beber água diretamente do riacho, passamos a pegar água com as mãos, depois com uma folha bem larga, uma cuia… aprendemos a fazer copos e canudinhos; desenvolvemos tecnologias que levam a água até em casa, prontinha para ser usada. Uma colher de açúcar e uma pitada de sal misturadas em um copo d’água viram o soro caseiro, bebida que, todos os anos, cura milhões de crianças desidratadas, no mundo inteiro: reconhecido pela ONU como uma das maiores tecnologias do século XX, o soro caseiro tem o gosto de uma lágrima.
Brinco tem origem na palavra vínculo. Vem daí a ideia do brincar como criar laços ou como jeito de cativar. Assim, brinco pode nos trazer a ideia de posse (um laço que prende, que envolve) e, também, a ideia de aliança (um anel que une e desenvolve). Como essenciais e presentes na vida em grupo, essas duas relações, a de posse e a de aliança, aparecem misturadas e andam sempre entrelaçadas.
É da própria natureza do ser humano, criança ou adulto, se envolver e se desenvolver por meio do brincar: é nossa natureza lúdica que nos incita a usar os sentidos e nos permite, por meio do corpo, entrar em contato com todos os demais corpos e energias do universo. Está em nosso DNA de seres vivos a necessidade de explorar, de saber como funciona, para que serve e como pode nos ser útil: é nossa tendência inata de tudo apalpar, ouvir, cheirar, olhar e saborear.
Nos espaços em que faltam brinquedos, a criança se encarrega de os fabricar, sem nenhuma sofisticação: um cabo de vassoura, facilmente, se transforma em veloz cavalo, montado por corajoso caçador de aventuras; amarrado a um pedaço de linha de costura, lá vai o sol numa folha de papel, qual pipa voando sobre nuvens. Algo parecido acontece com jovens e adultos, quando precisam de oportunidades para usar tecnologias e com elas criar incontáveis formas de experimentar.
Nosso desejo de posse cultiva o “é meu” e busca satisfazer a necessidade de sermos donos. Precisamos fazer copos para pegar água e saciar nossa sede. É mesmo essa paixão pela posse que nos leva a construir um patrimônio, nossa permanente tentativa de nos constituirmos senhores: é nosso lado masculino querendo sempre prover, encher a caixa d’água e ter nosso reservatório particular. Levado ao extremo, esse desejo nos faz correr atrás do lagarto feroz que tenta dominar a terra e a agir como se, no trem da vida, o vagão restaurante tivesse lugar somente para os nossos.
Na busca da aliança, cultivamos o “é nosso” e, diante de nossas posses, nos postamos como administradores. É a paixão pela aliança que nos empurra para o matrimônio, a incessante labuta de cuidar e a constante certeza de sempre ser mais: cuidamos para distribuir água e preservar nossas fontes. Corremos atrás de nosso super herói de visão ampliada: é olhar feminino capaz de sempre acolher e provar que na mesa tem lugar para todos. No extremo, fora da aliança com os outros, tendemos a perder o senso da solidariedade universal e, com ele, o sentido do humano viver.
“Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava o rock para as matinêsAgora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu paísNão, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Sim, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascidoAgora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim?”(João e Maria — Chico Buarque / Sivuca)