criatividade pensando fora da caixa

“Pela terceira e última vez, estou passando para avisar que, daqui a mais dois meses, a enchente vai chegar. Todo mundo precisa sair desse vale que ficará completamente inundado. Levem tudo o que puderem para o novo lugar onde vocês irão morar!”

Obedecendo à ordem da empresa, via carro de som, os moradores começaram a mudança…

Os moinhos movidos a água eram sua principal tecnologia: com eles beneficiavam o trigo e o milho. Também eram movidas pelas quedas d’água as enormes cortadeiras, utilizadas no preparo da ração para os animais.

Foi necessário um esforço gigantesco para transportar essas pesadas máquinas até a nova terra, onde começariam a viver. A chegada dos moinhos e cortadeiras foi comemorada com foguetórios: afinal de contas, acabavam de ter em mãos suas tecnologias de sobrevivência.

Quando foram instalar os pesados artefatos, se deram conta que no local não havia água para tocar moinhos ou cortadeiras: a energia principal estava no vento…

A enchente chegou e trouxe um barco sem rumo, cheio de novas necessidades, pilotado por uma caixa de mudanças. Em ocasiões parecidas, saímos encharcados de ideias e costumamos apelar para nossa criatividade, capacidade que temos de inventar soluções diante de novos problemas. Vamos embarcar nessa enchente para refletir sobre criatividade, colocando dois pensadores para conversar. Apesar de um ser francês e outro alemão, é possível entender um pouco do que eles falam porque dialogam sobre nossa maneira humana de morar na Terra.

O pensador francês, Edgar Morin, nascido em 08 de julho de 1921, afirma: “é prosaicamente que o ser humano habita a Terra”. Bem antes dele, Friedrich Hölderling (1770–1843), poeta alemão, diz: “é poeticamente que o ser humano habita a Terra”. Poesia e prosa são dois gêneros literários diferentes: eles supõem olhar a vida de modos distintos. Vamos colocar essas duas lentes, que formam um só par de óculos, para examinar as possíveis maneiras que temos de habitar a Terra. É nesse habitar que exercitamos e usufruímos de nossa capacidade inata de criar.

A prosa olha o dia a dia e a rotina da vida. É nossa labuta diária feita de tensões familiares e sociais, de horários, obrigações e deveres profissionais, de ocupações e preocupações, de pequenas alegrias ligadas à labuta diária. Gastamos grande parte de nosso tempo nessa luta pela sobrevivência. Nosso existir depende, na realidade, de um prato de comida, de um pouco de água e de alguém com quem partilhar a andança da vida.

A fim de atender a nossas necessidades, precisamos abrir-nos ao mundo. Para isso, criamos a linguagem, por meio da qual damos significado ao mundo, e inventamos instrumentos que prolongam nossos membros e nos ajudam a intervir. Ao mesmo tempo em que modificamos o mundo, vamos sendo modificados por ele. Por meio das modificações que fazemos do lugar onde moramos e de nós mesmos, construímos a cultura, uma criação especificamente humana. É essa cultura que atende a nossas necessidades infra estruturais (um lugar para morar e trabalhar) e também àquelas mais ligadas ao sentido da vida e da sociedade (um lugar para conversar e conviver).

Com o olhar do poeta, enxergamos a Terra como ser vivo e a experimentamos como algo falante, grandioso e mágico. A Terra se mostra em paisagens, cores, odores; carrega em si a imensidão, a vibração; se esconde nas profundezas do universo e guarda seus segredos e mistérios.

Experimentamos nossa dimensão poética quando contemplamos, por exemplo, a floresta. Ela se parece com um grande templo verde, habitado por mil divindades: sentimo-nos como bichinhos, perdidos em meio à infindável biodiversidade; pequenos seres diante da imensidão do verde e da exuberância das águas. Habitamos a Terra como poetas em cada momento: quando sentimos na pele o frescor da manhã, o convite do Sol, o cair da tarde e nos deixamos cobrir pela escuridão da noite.

Tanto a prosa quanto a poesia emergem da criatividade do ser humana. A criatividade faz com que nos sintamos tomados por uma força bem maior do que nós. É força que nos traz emoções inusitadas, ideias novas; fabricamos metáforas significativas e descobrimos sempre novos valores. Ela faz nascer em cada um de nós alguém capaz de sintonizar com as energias do universo, de harmonizar-se com a sinfonia universal e de vibrar junto com o outro, a natureza e o cosmos. Desse modo, nos sentimos criaturas e criadores: viramos filhos da casa e do dono da casa. É a criatividade, capacidade que nos permite desvendar novos e surpreendentes sentidos da realidade, e nos permite participar na dança da vida.

Prosa e poesia são dimensões complementares que carregamos em nós: fomos criados criativos.

Nascemos sem um órgão especializado em sobrevivência: um recém-nascido, abandonado à própria sorte, corre o risco de morrer. Não é como um patinho que logo sai nadando e buscando alimento. A criança precisa de alguém que a alimente e cuide dela. Essa dependência nos ajuda a estabelecer o rumo do trabalho que desenvolvemos na educação de crianças: precisamos educar as crianças por meio de oportunidades e espaços onde possam desenvolver sua criatividade. É o nosso modo de reconhecer o outro como legítimo outro e acreditar, efetivamente, que todo ser vivo nasce equipado para existir e coexistir com prazer e sucesso.

Somos portadores de um potencial imenso de criatividade. Ele se concretiza em todos os campos: na linguagem, na culinária, no arranjo da casa, na forma de vestir-se, na música, na arte plástica, na criação literária, na invenção científica, na produção da cultura, da filosofia e da religião. Nesses campos realizamos nossa liberdade criadora e, com isso, dialogamos com a criação e com “Aquele que chamamos de Criador do Céu e da Terra” ou “Aquele que invocamos como Pai Nosso” ou “Aquele que chamamos de Oxum, o dono dos céus”.

Criatividade, como toda capacidade, pode ser desenvolvida. Muitas dicas para nos tornamos cada vez mais criativos estão dentro da própria criatividade. Para descobri-las, podemos fazer um caça-palavras.

Logo no começo encontramos cria. É claro que criatividade é a qualidade de quem cria. Criar não significa fazer coisas inéditas ou diferentes. Podemos pegar algo já feito e usá-lo para outro fim. Foi isso que fez a Siren (Camilla Santos) ao grafitar em um muro o livro “Menino Invisível” do Hugo Barros. O mesmo muro que era pichado passou a ser papel divulgador de cultura: ficou muito mais bonito e, em vez de isolar as pessoas, começou a ser ponte que leva à democracia.

Também no começo, tropeçamos com ria. Não é brincadeira não: para criar é preciso aprender a rir, a descobrir a graça escondida nos fatos. Podemos flagrar isso nas charges, mostras de atenção aos detalhes e jeito inteligente de descrever fatos e personagens. É o que faz todo artista criativo que escuta uma canção onde os outros só percebem ruídos. Rir também vem junto com brinquedo. Em geral os brinquedos prontos não ajudam muito a nossa criatividade, sobretudo aqueles que exigem apenas que apertemos botões tipo liga-desliga.

O riso de satisfação vem acompanhado de atividade. Sugere que precisamos nos movimentar para desenvolvermos a alegria que vem embarcada na criatividade: movimentar o corpo e a mente. O movimento do corpo pede que nos alimentemos bem, façamos exercícios físicos e durmamos tempo suficiente. Nas enchentes, descobrimos que podemos comer menos e nos nutrir melhor; descobrimos também a falta que faz uma noite bem dormida e passamos a não exagerar nos exercícios físicos.

Quanto ao movimento da mente, ele pode ser feito por meio da leitura e da meditação: a leitura nos ajuda a perceber melhor o contexto onde estamos inseridos, as soluções encontradas pelas pessoas para o atendimento de suas necessidades, o lado prosaico da vida. A meditação nos puxa para dentro de nós mesmos e faz com que nos conheçamos melhor. Cada puxada para dentro vem acompanhada de abertura de uma janela que nos liga a todos os seres viventes, nos mostra o lugar onde habitamos e nos coloca em sintonia com o universo: cantamos a poesia da vida.

Disfarçado no meio da criatividade aparece Davi, o poeta dos salmos. Criou fama como o jovem pastor que enfrentou o gigante Golias. O guerreiro veio todo protegido: usava capacete, vestia uma couraça e trazia caneleiras, tudo feito de bronze; estava armado com dardo, lança e espada. Davi chegou à linha de batalha com uma funda (atiradeira) e levava um alforje com pedras lisas tiradas do rio; não tinha espada e nem lança. “Tirando uma pedra de seu alforje, arremessou-a com a atiradeira e atingiu o filisteu na testa, de tal modo que ela ficou encravada, e ele caiu, dando com o rosto no chão”. Com a espada tirada do gigante, Davi acabou de matá-lo. Cortou a cabeça de Golias e a exibiu para o povo como troféu de vitória.

A criatividade pode ser desenvolvida quando conseguimos, com o pouco que temos em mãos, fazer muito! O pescador diz: “precisamos fazer a canoa com a madeira que temos”.

No final tem a idade. Para lembrar que criatividade não tem idade: nascemos criativos, toda criança é muito criativa e, ao longo de toda vida, somos criativos. Quando mais velhos, corremos o risco de nos apegar ao que estamos acostumados a fazer, de usar as mesmas tecnologias que sempre funcionaram, defender nossas certezas e valores. Desse modo, fechamos a porta ao novo e ficamos sonhando com um passado que já não tem pernas para voltar.

Por ser a mais importante, a vida chegou por último: nossa criatividade nos permite falar da vida, em verso e prosa. Para isso, basta superarmos a mania que temos de só enxergar cinquenta tons de cinza em nosso arco-íris preto e branco; e passarmos a acreditar nas cores do arco-íris que, após o dilúvio, celebra a aliança entre a Terra e o Céu.

Efetivamente, são cegos e surdos e vítimas da lobotomia do paradigma moderno, aqueles que veem a Terra simplesmente como reservatório de recursos materiais, como um laboratório de elementos físico-químicos e como um conglomerado desconexo de águas e solos.

A Terra é Gaia, Pacha Mama, Magna Mater, Grande Mãe.

(Leonardo Boff — em “O despertar da águia”)

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