Nas primeiras escolas de engenharia, iniciava-se o curso com a visita dos estudantes a uma locomotiva. Os aprendizes precisavam desmontar a máquina, examinar cada uma das peças e, por fim, montar a máquina novamente. Atualmente, esse trabalho de desmonte e montagem é feito em laboratórios físicos ou virtuais. Nesse processo, podemos flagrar algumas ações do estudante: examinar cada peça, entender o lugar ocupado pela peça na locomotiva e, por fim, montar a máquina. A finalidade desse processo é formar o engenheiro, alguém capaz de projetar uma locomotiva. É usual chamar de engenheiro de concepção aquele que faz o projeto.
Ao uso do conhecimento para produzir a locomotiva chamamos de tecnologia, palavra que usamos também para designar a própria locomotiva. Dito de outra forma, a locomotiva sai de fábrica carregada de conhecimento. De modo geral todo objeto traz dentro de si conhecimento. Assim, a construção de um objeto (de uma tecnologia) começa com a construção de conhecimento. A mais disso, podemos afirmar que a finalidade da construção do conhecimento é nos tornar capazes de agir.
Pedimos a um engenheiro de concepção para nos ajudar a olhar o processo de construção do conhecimento e descobrir o que fazem os aprendizes nas várias etapas desse empreendimento. Começamos por perguntar o que pretendemos construir, ou seja, qual é nosso objeto de desejo ou nosso objetivo. Objeto é o que está jogado à nossa frente. Tem o mesmo significado de problema e funciona como endereço, objetivo ou meta que pretendemos atingir. Para chegar onde queremos, precisamos escolher um caminho. Pode ser caminho pronto ou caminho que vamos fazendo ao andar. De qualquer modo, é bom termos um esquema, um esqueleto desse caminho.
Antes de fazermos um esquema que sirva na construção de qualquer conhecimento, podemos pensar em um caso particular, a ser visto como modelo. Suponhamos, por exemplo, que nosso objeto de desejo seja a fala: queremos aprender a falar. O esquema para a construção da linguagem pode ser este: ouvir → escutar → falar. Para seguir esse esquema, precisamos saber o que é ouvir, escutar e falar. Além disso, é desejável sabermos quais são as capacidades que usamos em cada uma dessas ações. Para ouvir, usamos nosso aparelho auditivo: ouvimos sons ou ruídos. Escutar quer dizer atribuir significado ao que ouvimos, o que fazemos por meio da inteligência. Falar é agir de acordo com o que escutamos. Para falar, usamos a linguagem verbal que pode ser oral ou a escrita. Como casos particulares: A mãe ouve o choro do bebê → entende que o bebê quer mamar → vai dar de mamar ao bebê. Ouvimos uma fala em idioma desconhecido → alguém interpreta esse linguajar → podemos replicar a fala em nosso idioma.
Depois de ver esse esquema particular, podemos tentar fazer um esquema geral, que sirva para qualquer tipo de conhecimento. Nosso objeto de desejo é o conhecimento e nosso objetivo é aprender a conhecer. Dentre os inúmeros esquemas possíveis, sugerimos dois que aparecem com maior frequência: ver →julgar → agir e perceber → interpretar → compreender. O primeiro andou em voga nos anos 50 e 60 do século XX. O segundo passou a ser mais frequente a partir de 1970 e usado pelos aplicativos de base computacional.
Como estamos na era do conhecimento ou da informática, optamos pelo segundo. A partir dessa escolha, desenhamos o esquema que vem na sequência. Aproveitamos para nele inserir as capacidades que usamos em cada uma das ações desenvolvidas. Como todo esquema ou esqueleto, precisa ser complementado.
Perceber: percebemos por meio dos sentidos (nos robôs, os sentidos são os sensores) → Interpretar: interpretamos, entendemos ou atribuímos significado por meio da inteligência (nos robôs, está a inteligência artificial, impressa nos softwares)→ Compreender: compreendemos ou apreendemos por meio da imaginação (os robôs agem sob o comando de algoritmos)
Para analisarmos esse esquema, começamos por dizer ou escrever o significado dos verbos perceber, interpretar e compreender. Junto colocamos as capacidades que usamos em cada ação. Esse exercício de dizer ou escrever nos possibilita descobrir e clarear ideias, sobretudo quando o fazemos em grupo.
Perceber é termo vindo do latim percipere que significa observar ou conhecer por meio dos sentidos. Todas as coisas e seres que encontramos são dados ou objetos de nosso desejo. Para perceber usamos os sentidos que podemos chamar de inteligência sensorial. Para apurar nossos sentidos, fabricamos muitas tecnologias ou utilidades como, por exemplo, o telescópio, o tomógrafo, o oxímetro e o celular. Podemos considerar o conhecimento como algo que incorporamos, faz parte do nosso corpo e, como tal, é biológico.
Interpretar vem do termo latino interpres, usado para indicar quem atua como mediador, intérprete, intermediário ou mensageiro. Também podemos ver interpres como termo formado de inter(entre) e pretium (preço), sugerindo que é o intermediário que estabelece o preço de certa mercadoria. A raiz de pretium é per que se refere a troca de mercadorias. Interpretar é, pois, atribuir significado aos dados. Para dar significado ao observado usamos a inteligência, capacidade de ler nas entrelinhas. Inteligência vem das palavras latinas inteligare ou intelegere. Em ambas aparece inter (entre ou dentro). Na primeira está ligare que traz a ideia de ligar, unir ou prender; na segunda vem legere que quer dizer escolher, selecionar ou ler. Assim, interpretar nos permite ler a mensagem que vem escrita em cada um dos dados que observamos. Interpretar é escutar o que os dados nos falam. Interpretar traz a ideia de descobrir (tirar o que está encobrindo) ou desvelar (tirar o véu): é a arte do escultor que tira o que está escondendo a escultura ou de quem abre o envelope para ler a carta ou de quem desembrulha para ver o presente. Como capacidade de descobrir, podemos distinguir vários tipos de inteligência, classificados de acordo com a capacidade ou talento que usamos. Assim, podemos perceber múltiplas inteligências como, por exemplo: a lógica, que usa a razão; a sensorial, a sensação; a auditiva, a audição; a visual, a visão e a emocional, a emoção. Desse modo, a tecnologia da inteligência humana é o “embodied brain”, o cérebro incorporado ou corporificado. Estamos passando do “penso, logo existo” para o “existo, logo penso”. Costumamos dizer que, graças a essa tecnologia, somos capazes de pensar, organizar o pensamento e o transformarmos em ação.
Compreender deriva do verbo latino, comprehendere, literalmente apanhar um punhado com a mão. Tem o mesmo significado de aprehendere e de concapire. Assim, compreensão, apreensão e concepção trazem a ideia de pegar um feixe, juntar as peças, apropriar-se de um punhado de dados, criar um símbolo. De concapire vem concebido e, também, conceito. A capacidade que usamos para compreender é a imaginação: é ela que nos permite ver o conjunto dos dados, formando um todo. Se preferirmos, é a imaginação que, reunindo todos os dados, fabrica a imagem ou o conceito ou, ainda, o símbolo. Alguns seres têm um sexto sentido que costumamos chamar de intuição: esse sexto sentido leva diretamente à compreensão, à visão ou à imagem do todo, sem a necessidade de passar pela percepção e a interpretação. Por vezes, a visão do todo aparece de uma hora para a outra: costumamos chamar isso de “insight”.
Enquanto construímos o significado de cada verbo, podemos perceber que os intérpretes ou intermediários são nossos ajudantes na construção. Na realidade, somos nós os construtores, somos nós que colocamos a mão na massa, ou seja, somos nós os sujeitos que constroem. Podemos até comparar construção com bronzeamento: ninguém pede a outra pessoa para se bronzear em seu lugar. Tal condição aparece na fala da criança dirigida ao adulto: “Me ajude a fazer isso sozinha!”.
Terminamos com um pequeno texto de Marcelo Viana, Diretor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA). Pode nos ajudar a perceber o valor do conhecimento e despertar nosso desejo por conhecer.
Contam que Henry Ford, pioneiro da indústria automobilística, encomendou um dínamo para seus carros, mas o aparelho não funcionava, e o fornecedor não conseguia resolver o problema. Ford então chamou “o homem mais inteligente da América”, o matemático de origem húngara John von Neumann, do Instituto de Estudos Avançados de Princeton.
Von Neumann olhou os diagramas, caminhou em volta do dínamo, tirou um lápis do bolso e marcou uma linha no invólucro: “Se cortar aqui, funciona”. Cortaram, e o dínamo funcionou.
Quando Ford pediu a conta, von Neumann mandou nota no valor de 5 mil dólares, uma soma enorme para a época. Surpreso, Ford pediu o detalhamento. Von Neumann respondeu: marcar a linha com o lápis, 1 dólar; saber onde marcar a linha, 4.999 dólares. Ford pagou.
Que conhecimento é dinheiro (e poder) é lição antiga. A 2ª Guerra Mundial foi ganha pelo poderio industrial norte-americano, baseado no conhecimento científico e tecnológico. E os EUA nunca mais pararam de importar os melhores cérebros do mundo de países menos capazes ou menos cuidadosos em preservar sua relevância e independência.
O valor material da ciência está amplamente comprovado e mensurado. Peguemos o caso da matemática: estudos técnicos realizados nos últimos anos em diversos países (Reino Unido, França, Austrália, Holanda e Espanha) comprovam que as atividades econômicas com alto conteúdo matemático geram grande parte da riqueza nacional: cerca de 15% do PIB.
O que está em jogo não é pouco: 15% do PIB do Brasil é R$ 1 trilhão. Por ano.
(Reprodução de parte da coluna de Marcelo Viana — Folha de São Paulo. 05/02/2020)