No contexto dos filósofos gregos, o termophysis, de onde vem física, significa a “realidade fundamental”, ou seja, o conjunto de todas as coisas naturais que existem. Physis significa, também, origem. Na época, quando os gregos consideravam que tudo o que existe é natural, a physis indicava o conjunto de todas as coisas e seu problema era buscar a origem e a constituição de tudo o que está ou ocorre no mundo. Sob essa lógica, a physis abrigava a filosofia, a religião e a ciência: era como um pacote por meio do qual se examinava a organização do mundo, questionava a origem e a raiz de todas as coisas e estudava a razão ou o pensamento, em sua busca de compreender o universo. Os romanos usavam o termo natura para indicar essa mesma ideia de physis.
Nas línguas indo-europeias, a mesma raiz de physis dá origem à palavra brahma que, em sânscrito, significa a “realidade fundamental” e, também, a origem. Brahmaou Brama é a divindade central do hinduísmo, testemunhada pelos Upanixades (textos sagrados). Junto com Shiva e Visnu, forma uma trindade divina. A Bíblia se refere às origens e a todas as coisa no seu primeiro livro, chamado Gênesis. Gênesis é palavra latina que significa origem ou, se preferirmos, “realidade fundamental”. A metáfora que descreve o universo traz a concepção de um Deus criador: Ele vê que, em sua obra, tudo é bom, e coloca o homem e a mulher para cuidarem de um jardim, uma casa feita especialmente para o casal e seus descendentes.
Carregamos essa ideia para examinar dois espaços onde ocorrem nossas relações com o universo que habitamos: a casa e a rua. Brahma nos ajuda a perceber que fazemos parte de uma rede viva totalmente mergulhada na Terra e, em consequência, intimamente ligada a todo o universo. O Gênesis nos convida a sair da cômoda posição de meros espectadores e entrar na arena da vida, como homens e mulheres, a fim de cuidarmos da Terra e arrumarmos nossa casa. “Vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais que dois!”
Sob essa perspectiva, casa e rua não designam apenas espaços geográficos ou coisas físicas mensuráveis. Referem-se, também, a entidades morais, esferas de ação social, domínios culturais institucionalizados. São espaços onde nos relacionamos, que despertam emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens. Nesses espaços, as pessoas nascem, crescem e se manifestam no movimento.
Precisamos de um lugarzinho nosso, onde costumamos dizer que nos sentimos em casa e onde podemos tirar a máscara. É lá que desenvolvemos um conjunto de relações familiares, abrimos a porta para a espontaneidade e deixamos de fora as formalidades que nos são impostas pela vida social. É nossa casa, nosso universo aconchegante, onde nos movemos com mais liberdade. No ambiente familiar, nos sentimos fazendo parte, sentimo-nos acolhidos e gostados. São dois sentimentos que nos permitem, a um só tempo, valorizar os indivíduos (os eus) e construir o nós.
Aprendemos a conviver na diferença dos sexos, das idades e dos graus de parentesco; nessa interação de pessoas, experimentamos a diversidade e aprendemos a arte de ser companheiro, aquele com quem dividimos o pão. Nesse contato de privacidade, respiramos em uma atmosfera amorosa e inclusiva: é mesmo o lugar privilegiado do amor que acolhe e considera o outro como legítimo outro. Sem precisar destruir a harmonia, própria da casa, podemos dialogar sobre a diferença de projetos de vida, as características individuais e os conflitos afetivos: é o sentimento de estar junto e, apesar das diferentes percepções, estar seguindo na mesma direção.
É no interior da casa que recebemos um nome, plantamos nossos valores fundamentais, construímos nossa própria identidade e começamos nosso processo de socialização. Defendemos essa ideia quando afirmamos que “educação vem de berço” ou que “temos um nome a zelar”. As festas de família, os batizados, os aniversários, os casamentos, as doenças e os enterros estreitam os laços da família e contribuem para que se torne nosso porto seguro. Nesse porto lançamos a âncora e firmamos nosso barco, o abastecemos e pegamos a bússola norteadora de nossa viagem.
Saindo de nossa casa, vamos para a rua, onde precisamos usar máscara. Mais do que um espaço físico, a rua indica um novo espaço de relações, bem distintas das que ocorrem na casa. São relações de trabalho, de luta pela vida e de hierarquias; acontecem entre indivíduos de diferentes famílias, em organizações públicas ou privadas. Em lugar da consideração e do amor, vigoram as leis, os ordenamentos, a afirmação do status social e profissional, o tempo dos relógios, a competição. Impera a lógica do produzir mais, com menor custo e em menos tempo.
No mundo da rua, prevalece a desconfiança, a hostilidade e não o entendimento. Por isso há polícia, muros, guaritas, sistemas de alarme e leis ou normas a serem observadas sob ameaça de punição. Também nesse espaço, ocorrem rituais e celebrações tais como, por exemplo, os feriados, as festas nacionais e populares. São eventos que se caracterizam pelo anonimato, pelo individualismo e pelo espírito de massa. Na rua somos números cardinais ou ordinais , perdidos em meio a tantos outros: sou um dos 2300 seguidores, sou o trigésimo aluno da sala 12, o prisioneiro 234, o CPF 345635234–51.
A casa tranquila, que acolhe e liberta, e a rua agitada, que separa e trabalha, são realidades distintas e complementares. As duas são necessárias, fazem parte do movimento da vida e nos permitem costurar o tecido social. A força e a energia encontradas nas relações da casa nos impulsionam a transformar a rua em espaço que é casa de todos. Podemos, assim, dar um colorido humano à sociedade em sua forma de organizar o dia a dia das pessoas: é a estratégia que nos leva a enxergar que, por detrás da máscara, tem gente. Esse é o modo de conseguirmos fazer a Terra — nossa casa comum — voltar a ser um lindo jardim.
Parece que a pandemia do novo coronavírus escancarou a importância da ciência e as diferentes respostas dadas à COVID-19 podem nos deixar perceber que líderes mulheres — o jeito feminino que sabe cuidar — podem governar melhor em momentos de crise. Em um contexto de crescimento das fake news, que vêm para confundir e desinformar as pessoas, precisamos levar a ciência e a educação mais a sério.
A pandemia pode nos ajudar a viver de maneira mais sóbria, sob a perspectiva descrita com maestria pelo Papa Francisco no item 223 da encíclica Laudato Si, na qual fala a respeito do “cuidado da casa comum”:
“A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas. Deste modo conseguem reduzir o número das necessidades insatisfeitas e diminuem o cansaço e a ansiedade. É possível necessitar de pouco e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no contacto com a natureza, na oração. A felicidade exige saber limitar algumas necessidades que nos entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as múltiplas possibilidades que a vida oferece.”
Ao explicitar ainda mais as desigualdades no mundo, a pandemia serve, também, como oportunidade para as sociedades, instituídas na casa ou na rua, refletirem sobre suas prioridades. Podemos mudar nosso foco para o que realmente importa: aumentar e melhorar os gastos em saúde e educação; gastar menos em armas e mais em livros, menos em joias e mais em serviços, menos em palacetes e mais em barracões; menos em celulares e mais em leituras… O cardápio de menos e de mais é imenso! Sempre é tempo de fazermos nossas contas e nossas escolhas!
Anda, quero te dizer nenhum segredo
Falo desse chão, da nossa casa, vem que tá na hora de arrumar
Tempo, quero viver mais duzentos anos
Quero não ferir meu semelhante, nem por isso quero me ferir
Vamos precisar de todo mundo pra banir do mundo a opressão
Para construir a vida nova vamos precisar de muito amor
A felicidade mora ao lado e quem não é tolo pode ver
A paz na Terra, amor, o pé na terra
A paz na Terra, amor, o sal da…
Terra, és o mais bonito dos planetas
Tão te maltratando por dinheiro, tu que és a nave nossa irmã
Canta, leva tua vida em harmonia
E nos alimenta com teus frutos, tu que és do homem a maçã
Vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais que dois
Pra melhor juntar as nossas forças é só repartir melhor o pão
Recriar o paraíso agora para merecer quem vem depoisDeixa nascer o amor
Deixa fluir o amor
Deixa crescer o amor
Deixa viver o amor
O sal da Terra
Terra…(O sal da terra — Beto Guedes e Ronaldo Bastos)