arte de escutar

O menino de três anos brincava com um pedaço de arame. Primeiro, fez uma pulseira que pôs no braço e saiu exibindo para a mãe, ocupada com o preparo de mais uma refeição. Depois, no encosto de uma cadeira, o pedaço de arame virou um cavaleiro andando em seu cavalo, cena ignorada pelo pai que respondia recados no WhatsApp. Por fim, o arame se transformou nas orelhas do cavalo, o que fez seu cachorrinho balançar a cauda.

Vamos aproveitar os diversos usos que o menino faz do arame para escutar o que ele tenta dizer e, também, o que gostaria de escutar. Para fixar ideias, podemos considerar que a mente humana opera com duas formas de pensamento: o convergente e o divergente. O pensamento convergente, que tende à repetição e à conservação, alimenta certezas e traz a sensação de poder. Já o pensamento divergente tende à reorganização dos elementos, combina elementos incomuns com muita facilidade e estabelece novas conexões entre objetos e fatos. Como complementares, o pensamento convergente e o divergente estão presentes na mente humana.

Normalmente, nos adultos predomina o pensamento convergente, fundado em sua visão de mundo e nas próprias convicções. Além de ser conveniente para a preservação do status — familiar ou social — , mudar de opinião pode significar perda de poder ou de capacidade de dominação. A fixação no pensamento convergente, que nega a evolução do pensamento, nos torna incapazes de escutar o que nos dizem as muitas relações e interações que temos nos diferentes lugares onde convivemos.

Por outro lado, nas crianças sobressai o pensamento divergente. Elas buscam o poder mudando de ideia, na honestidade singela que têm em relação às ideias e aos outros, na honestidade de sua escuta. No brincar, as crianças pegam a realidade nas mãos para se apropriar dela. Elas a decompõem e recompõem livremente, manifestando nessas ações tanto o pensamento divergente (decompor) quanto o convergente (recompor). Dessa forma, as crianças confrontam a realidade e a aceitam, desenvolvem o pensamento criativo e fogem de uma realidade que, muitas vezes, se mostra opressiva. Infelizmente, as crianças logo entendem que ter ideias divergentes das de adultos — pais ou professores — e expressá-las na hora por eles vista como errada, não é algo considerado positivo.

As crianças nascem munidas de capacidades que as tornam aptas a se relacionarem com os outros seres viventes e com todo o ecossistema que habitam. Bem curiosas, são capazes de construir seus próprios pensamentos, formular perguntas, buscar respostas e comunicar suas descobertas por meio de múltiplas linguagens. Falas, gestos, desenhos, olhares, pinturas, esculturas, jogos e brincadeiras são algumas das inúmeras linguagens por meio das quais as crianças se expressam. Essas linguagens, em suas mais variadas formas, são construídas e desenvolvidas por meio de experiências possibilitadas nos diferentes espaços de convivência — família, escola e sociedade.

Além de dispormos de várias formas de linguagem e de múltiplas inteligências, também somos capazes da escuta recíproca, capacidade que possibilita a comunicação e o diálogo entre os humanos. Voltando para o dobrador de arame, podemos perceber que as crianças são biologicamente predispostas a se comunicar e estabelecer relacionamentos. Vem daí a importância de criarmos espaços e oportunidades para que as crianças representem suas imagens mentais e as compartilhem com os outros.

Nesses ambientes, as crianças desenvolvem a sensibilidade natural para apreciar, desenvolver e compartilhar as ideias com outras crianças. Elas se mostram ouvintes extraordinárias: codificam, decodificam e interpretam dados com extrema criatividade. Escutam a vida em todas suas facetas, escutam os outros com generosidade e logo percebem que escutar é um ato essencial de comunicação. O aprender a escutar está na base de todo processo criativo.

Na experiência da convivência, podemos cultivar a ideia de que os outros são indispensáveis para nossa própria identidade e nossa própria existência. Ao compartilhar, entendemos não apenas que o outro se torna indispensável para a nossa identidade, para nossa compreensão, para a comunicação e a escuta, mas também que aprender juntos gera prazer no grupo, que o grupo se torna o lugar de aprendizagem. Cultivar espaços e tempos de escuta é um valor fundamental que podemos adotar ou não. Com ele podemos criar sujeitos competentes, capazes de escuta reciproca, sensíveis às ideias de outras pessoas, empenhados em enriquecer as suas próprias e gerar ideias coletivas.

Sob a inspiração de Loris Malaguzzi, a escola Reggio Emília, introduziu em suas unidades o ateliê como espaço distinto da sala de artes das escolas tradicionais. Seu propósito era abrir lugar para um novo modo de trabalhar, um espaço convidativo, com muitos materiais, que valorizasse a expressividade das crianças e possibilitasse a pesquisa sobre os processos de significação da criança e do adulto. Ao longo do tempo, o ateliê foi sendo construído e se caracterizando como espaço de escuta recíproca de crianças e adultos, um lugar adequado para investigar e aprender.

“Temos de nos convencer de que as competências expressivas crescem e amadurecem suas linguagens perto e longe de casa, e que as crianças descobrem conosco a solidariedade das ações, das linguagens, dos ensinamentos e dos sentidos. Temos de nos convencer de que é essencial preservar nas crianças (e em nós mesmos) o sentido de encantamento e surpresa, pois a criatividade, assim como o conhecimento, é filha da surpresa.” (Loris Malaguzzi)

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