Eram três crianças, entretidas em jogo de tabuleiro. Cada uma delas, representada por um pequeno peão de plástico, deveria percorrer uma trilha com várias bifurcações e que levava até um tesouro. O caminho era feito de pequenos quadrados, lugares que as crianças chamavam de casas. De acordo com o combinado, começava quem, ao lançar o dado, obtivesse o menor número.
Começado o jogo, cada jogador deveria aguardar sua vez de lançar o dado e andar o número de casas, correspondente ao apresentado pelo dado. Em alguns quadrados, apareciam comandos do tipo “voltar três casas” ou “avançar mais duas casas” ou “recomeçar desde o início” ou “vire à esquerda”. A brincadeira terminava com a chegada ao tesouro: quem chegasse primeiro ficava na torcida para que os demais também chegassem.
O jogo só podia começar de novo depois de todos conseguirem chegar. Apesar da torcida, era clara a impaciência de quem já tinha chegado: afinal de contas, melhor do que ficar na torcida é entrar no jogo.
Vamos entrar na brincadeira das crianças, munidos com as lentes da complexidade, e analisar um saber que precisamos incorporar ao longo de toda a vida: aprender a condição humana. A pretensão é ajudar a compor nossa identidade e buscar respostas a perguntas que nos fazemos: Quem somos? Onde estamos? O que precisamos fazer? Para onde vamos? Essas perguntas, que costumamos chamar de existenciais, receberam diferentes respostas, todas elas provisórias e bem ligadas à visão de mundo de cada época. Com essa ideia, vamos começar por examinar nosso endereço.
Nossa atual visão de mundo, fundamentada no desenvolvimento técnico-científico, difere profundamente da que nos foi transmitida pelos antepassados. Apoiados em uma ciência empírica bastante rudimentar e criando grandes símbolos e belos mitos, os que chegaram primeiro, foram construindo uma explicação dos seres e fenômenos observados. Sua compreensão de mundo, até hoje, não deixa de nos encantar e nos ajuda a responder sobre o lugar onde moramos, nosso endereço no universo. Vamos passear por algumas dessas visões, sabendo que em todas as eras coexistem diferentes percepções de mundo, condição que favorece controvérsias e desentendimentos.
Os gregos olhavam o universo como um sistema bem ordenado e autossustentado. Chamado de Cosmos (o organizado e bonito), ele vive em constante luta contra o Caos (o desorganizado e feio). Para os medievais, os muitos deuses e mitos são substituídos por um Deus que toma conta de tudo: o universo é a criação boa e bonita de Deus, que com sua Providência divina, ordena tudo para seu fim último e feliz.
A figura que representa essa concepção antiga ou medieval é a pirâmide. Todos os seres funcionam como degraus de uma escada que começa na terra e termina no céu, dentro de Deus ou dos deuses: uma imensa pirâmide em cuja ponta brilha o ser supremo ou o Deus criador. Desnecessário lembrar que essa forma piramidal de enxergar o mundo persiste até hoje e que, a partir dessa visão, construímos nossos pequenos mundos.
Vamos seguir nossa andança, rumo ao que podemos chamar de Idade Moderna. Com a criação de novos instrumentos de exploração dos astros e com o surgimento de melhores ferramentas de medição de seres e fenômenos, começamos a olhar o universo como natureza. Segundo essa percepção, o movimento celeste e a mecânica terrestre funcionam perfeitamente, pois tudo obedece a um desígnio traçado pelo Criador. Nessa visão, as leis naturais são imutáveis e perenes. A metáfora que ilustra esta cosmologia é a do relógio, que tem um mecanismo imperturbável e exato; o Criador é visto como um Grande Relojoeiro: “o tempo chega até nós em velocidade constante de seis minutos por hora”, “nada de novo debaixo do sol”, “na natureza nada se perde e nada se cria, tudo se transforma”… são expressões que refletem essa visão. Também essa ideia de mundo prevalece até nossos dias e, segundo ela, atuamos em nossos micromundos.
Para nós contemporâneos, da era científico-tecnológica, o universo é evolução, e pode ser imaginado como algo em constante movimento espiralado. Ele é uma realidade aberta, em permanente processo de criação e de organização; não está ainda pronto, mas carrega em si uma energia que o tona capaz de se autocriar e de se auto-organizar, sempre em fase de gênese e de expansão. Não é um universo fechado, mecanicamente determinado; suas leis possuem um caráter probabilístico e aproximativo: seu agir parece estar sujeito à indeterminação e à probabilidade. Expressamos isso quando dizemos que “a vida é feita de escolhas, encontros e desencontros” ou “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Nesse universo aberto, tudo está relacionado e é nas relações que tudo existe e acontece. Relacionar-se é poder criar laços e adaptar-se: é por meio das relações que o Universo evolui, juntamente com todos os seres e fenômenos. Sob essa visão, relacionar-se é a lei que impera no Universo e, fora desta lógica, ninguém sobrevive.
A figura que representa esta cosmovisão é a arena ou o jogo: moramos em um campo de jogo; Criador e criaturas são espertos jogadores de dados. Na arena, todos os presentes são incluídos e feitos participantes. Todos estão envolvidos no jogo, tanto os que jogam quanto os que assistem e torcem para os respectivos lados. É como se pensássemos em um barco, onde todo viajante também é remador. Dentro dessa visão, podemos pensar em como o universo está escrevendo sua história: não somente os humanos têm história, mas todos, também os demais seres; todos estamos dentro do campo de jogo, um processo evolutivo que vem da mais alta ancestralidade. Vamos todos, enredados em um jogo de relacionamentos, em cadeia, pelo qual construímos, com o desenrolar do tempo, nosso ser. Nessa arena, nosso endereço, tudo e todos têm a ver com tudo e com todos: existir e viver é inter-existir e conviver.
eu guardo em mim
dois corações
um que é do mar
um das paixões
um canto doce
um cheiro de temporal
eu guardo em mim
um deus, um louco, um santo
um bem e um mal
eu guardo em mim
tantas canções
de tanto mar
tantas manhãs
encanto doce
o cheiro de um vendaval
guardo em mim
o deus, o louco, o santo
o bem, o mal(O Bem e o Mal — Danilo Caymmi)