Graças à rede de inter-relações que os seres humanos conseguem estabelecer entre si pelo comércio mundial, pelas comunicações, pelas viagens e trocas culturais, podemos afirmar que entramos em uma nova fase da humanidade, a fase planetária. Essa comunicação globalizada, possibilitada pelas tecnologias de base computacional e pelo uso intensivo de inteligência artificial, nos permite alimentar um banco de dados capaz de nos trazer informações. Elas nos ajudam a orientar nossas ações e a tomar decisões, não mais como seres isolados, mas como sociedades interconectadas. Temos condições de ir criando uma inteligência coletiva que nos leva a descobrir a família humana, feita de muitos membros, de cores e valores diferentes, que se encontram em um mesmo endereço, no mesmo planeta Terra.
Esse morar juntos desenvolve em nós a consciência coletiva que nos faz entender que a Terra e a humanidade possuem a mesma origem e, ainda, que ambas têm o mesmo destino. Dito de outra forma, humanos e Terra, além de terem o mesmo passado, têm o mesmo presente e o mesmo futuro. Auxiliados pelas ciências, conseguimos melhorar nossa visão de Cosmos, perceber que estamos em um universo em evolução, entender nosso pertencimento à Terra e nossa condição de administradores dos recursos colocados à nossa disposição.
O habitar a Terra com os outros torna cada dia mais evidente que nascemos sob o princípio incondicional do amor e munidos de todas as capacidades necessárias para nos relacionarmos com todos e com tudo. Tal condição nos coloca diante de algumas questões: Como garantir uma convivência minimamente pacífica e humana entre todos? Como preservar a Casa Comum para que todos possam caber dentro dela, a natureza incluída? Como considerar o outro como legítimo outro? São perguntas ligadas à ética como forma humana de cuidar da Casa Comum, habitada por todos.
Nesse cenário de ligação entre todos e de todos com tudo, não podemos ficar indiferentes. Podemos acolher o outro, podemos ignorá-lo, rejeitá-lo, subordiná-lo e até agredi-lo ou eliminá-lo. São essas atitudes que configuram a ética, o modo humano de habitar. Ela se mostra benéfica quando faz do distante um próximo e do próximo um aliado, um parceiro, um irmão e irmã. Sob essa perspectiva, bom é tudo aquilo que aproxima as pessoas; bom é tudo o que cuida da vida em todas as suas formas e garante sua evolução. Mau é tudo o que ameaça, diminui e destrói a vida. Nas relações com o outro, a regra de ouro é: “faça ao outro o que você quer que ele faça a você”.
O princípio incondicional do amor pede uma ética mínima, fundada no cuidado de uns para com os outros, com a vida e com o Planeta. É a ética da cooperação e da solidariedade de todos com todos, pois somos interdependentes e só podemos viver e sobreviver juntos. É a ética da responsabilidade que toma consciência das consequências benéficas ou maléficas de nossas práticas. Por fim, é a ética da compaixão que se mostra sensível para quem menos tem e menos é, a fim de que não se sinta excluído mas inserido na comunidade da vida.
Em um exercício de utopia, podemos imaginar como seria o mundo globalizado dentro dos padrões éticos de cooperação, respeito à vida, sinergia com a natureza, admiração diante do Mistério do universo. Nele poderíamos fazer as pequenas revoluções do dia a dia, dar passos concretos, que nos tornariam pessoas mais éticas, mais sensíveis a valores, mais cooperativas, mais abertas para acolher e aprender com os diferentes. Poderíamos desenvolver ações que dignificassem a vida e estivessem atentas ao futuro, à integridade e à beleza da natureza.
Embora seja esse um possível mundo que podemos colocar no horizonte, a pandemia do Covid-19 nos alerta que organizamos nossa casa bem fora desse sonho. Para a ecofeminista, Vandana Shiva: “Um pequeno vírus pode nos ajudar a dar um grande passo à frente para fundar uma nova civilização planetária ecologista, baseada na harmonia com a natureza. Ou, então, podemos continuar vivendo a fantasia do domínio sobre o planeta e continuar avançando até a próxima pandemia. E, por último, até a extinção. A terra seguirá, conosco ou sem nós”.
A cultura dominante no mundo de um mercado globalizado se estrutura ao redor da categoria poder. Ela tem origem na visão dos humanos como seres à margem da natureza: são os senhores a Terra, podem manipular e explorar seus recursos, controlar outras espécies como fontes inesgotáveis de lucro. Nessa visão, os limites ecológicos e éticos são obstáculos que devem ser superados para aumentar o crescimento dos lucros empresariais. O poder é entendido e exercido como dominação da natureza, de povos sobre outros povos, de classes sobre classes, de pessoas sobre pessoas. Predomina a lógica do interesse individual e não a lógica do diálogo; a lógica da posse e do consumo prevalece sobre a lógica do encontro e da partilha. A lei mais forte é da competição e não da cooperação. Nesse modelo de ética, não cabem os direitos da Mãe Terra, os direitos de outras espécies, os direitos humanos, nem os das gerações futuras.
A superação desse modelo exige que rompamos com a economia do lucro e do crescimento ilimitado que leva a uma crise de sobrevivência da Terra como organismo vivo. Precisamos romper com o sistema econômico global que está gerando a mudança climática, a extinção de muitas espécies e a propagação de doenças mortais. Temos de explorar os recursos da Terra de forma consciente e sustentável, dar tempo para que se autorregenere, deixar espaço para espécies, para o restante dos seres humanos e para as gerações futuras. É urgente que escutemos o que a vida nos diz: todos somos membros da família planetária e temos direito de comer e de morar.
O que vivemos até aqui na história dos humanos deixa transparecer uma sociedade organizada em torno do poder: tem um cunho mecanicista (as pessoas são olhadas como peças de uma grande engrenagem produtora e consumidora), um cunho militarista (a segurança e a paz resultam do uso de armas) e, ainda, uma característica antropogênica (coloca o homem como dono e dominador, separado do ecossistema). Essa visão invadiu todas as nossas instituições, civis e militares, religiosas e leigas. Ela nos leva a uma prática individualista, postura que vai contra nossa natureza de seres solidários, parceiros da vida juntamente om todos os outros habitantes da Terra.
É a solidariedade que nos está salvando face ao ataque do coronavírus, a começar pelos operadores da saúde que generosamente arriscam suas vidas para salvar vidas. Assistimos atitudes de solidariedade em toda a sociedade mas especialmente nas periferias onde as pessoas não têm condições de fazer o isolamento social e não possuem reservas de alimentação. Muitas famílias que recebiam as cestas básicas, as repartiam entre outros mais necessitados.
A solidariedade, que está na base do cuidado com a vida, é uma atitude básica porque nascemos aparelhados para o conviver. Somos naturalmente solidários e podemos fazer uma opção pela parceria com todos, a partir dos últimos e invisíveis, para aqueles que não contam para o sistema imperante e são considerados prescindíveis e zeros econômicos. Desse modo, a começar por aqueles com quem convivemos, nossa solidariedade deixa de ser eletiva e engloba a todos, sob a lógica da vida, segundo a qual todos somos coiguais, ligados por laços objetivos de fraternidade.
Lembramos a fala do Papa Francisco na reunião feita com dezenas de movimentos sociais populares, em 2015, ao visitar a Bolívia. Na cidade de Santa Cruz de la Sierra disse:
Vocês têm que garantir os três Ts: Terra para morar nela e trabalhar. Teto para morar porque não são animais que vivem ao relento. Trabalho com o qual vocês se autorrealizam e conquistam tudo o que precisam.
Em seguida continuou: Não esperem nada de cima. Pois vem sempre mais do mesmo e geralmente ainda pior. Sejam vocês mesmos os protagonistas de um novo tipo de mundo, de uma nova democracia participativa e popular, com uma economia solidária, com uma agroecologia com produtos sãos e livres de transgênicos. Sejam os poetas da nova sociedade.
Lutem para que a ciência sirva à vida e não ao mercado. Empenhem-se pela justiça social sem a qual não há paz. Por fim, cuidem da Mãe Terra sem a qual nenhum projeto será possível.
Para concluir, uma reflexão de Vandana Shiva:
Precisamos de um novo Acordo Verde. A primeira coisa que precisamos é parar as invasões em nossas terras e comunidades e reconhecer que a economia global impulsionada pelas corporações é a recolonização baseada no ecocídio e no genocídio. Isso deve ser reconhecido como crime e contido.
E parte dessa mudança inclui o reconhecimento de que ganhar dinheiro não é “economia”. A economia é derivada da Oikos [em grego, ‘oikos’ (eco) significa casa; a junção com o sufixo ‘nomos’ (nomia), que significa lei/ordem, fez surgir a palavra economia] e significa o gerenciamento e cuidado de nossa casa, incluindo o planeta como nossa casa comum.
Devemos voltar para casa, para a Terra e repensar a maneira como organizamos nossas economias.
(Vandana Shiva, nasceu na Índia em 1 952. Tem doutorado em Física Quântica e Ph. D. em Filosofia. É ecofeminista, ativista ambiental, defensora da soberania alimentar e fundadora do Movimento Navdanya — Artigo publicado por El Salto — 11/04/2020)