Em nossa carteira de identidade biológica, somos classificados como mamíferos; pertencemos à ordem dos primatas. Nossa família é a dos hominídeos e o gênero, Homo da espécie sapiens. Somos mais conhecidos como Homo sapiens, nosso nome de batismo, usado para indicar tudo aquilo que nossos pais sonharam para nós. Moramos em um cantinho do Universo, que escolheu a Terra para ser nossa Mãe.
Homo vem de humus, palavra latina que significa terra fecunda, fértil e produtiva. A tradição hebraica utiliza Adam para designar “criatura humana feita de terra”, termo originado de adamá que quer dizer Mãe-Terra. Essas palavras indicam a estreita relação do ser humano com a Terra e, através dela, com os seres vivos e todo o universo. Na visão do Cosmos como energia, onde tudo é onda e tudo é partícula, a Terra, engravidada pela energia do Universo, gera pacotes de energia despejados em forma de inumeráveis seres que habitam nosso planeta. Depois de uma gestação de bilhões de anos, nasce da Terra o Homo sapiens. Chega especificado como sapiens, o sábio escolhido para ajudar na organização da vida e, desse modo, cuidar da mãe que o gerou e da casa onde nasceu.
A partir dos mamíferos, incorporamos o calor afetivo que une mãe, pai e filhos. Aprendemos a estender esse afeto para um círculo mais amplo na forma de ternura, amizade e amor. Dessas relações, surge a capacidade de falar como singularidade do ser humano, homem e mulher. Laços afetivos e interpessoais estreitam a cooperação entre os humanos, base biológica do entendimento e do morar juntos. Nesse espaço de troca de informações se constroem redes de solidariedade e de partilha. Nascidos sob o princípio incondicional do amor, estamos biologicamente capacitados para nos relacionarmos com tudo e com todos.
Em cada espaço onde habitamos, criamos uma inteligência coletiva. Ela se expressa por meio de nosso modo de habitar, nosso modo inteligente de viver como humanos. Se preferirmos, podemos considerar o coletivo como um pacote de energias direcionadas para um mesmo endereço, condição que costumamos chamar de sinergia. É assim que acontece no útero, nossa morada inicial, lugar sagrado onde somos plantados. Nele instalados, lançamos raízes e nos alimentamos, em cuidadoso processo de auto- organização. Desenvolvidos, somos empurrados para nova morada, nosso ninho familiar, necessitados dos cuidados de adultos. Nele somos alimentados e nos aprontamos para conviver em um novo espaço.
Acompanhados pela Biologia, exploramos algumas das moradias humanas. Começamos por considerar que todos os grupos sociais cuidam da alimentação, valorizam o convívio social e cultivam a espiritualidade. Um bom símbolo desse modo de viver é a mesa usada para refeições, em torno da qual se reúnem os comensais. Na mesa estão os alimentos, colhidos da Terra, que sustentam nosso corpo. Em volta da mesa se postam as pessoas que, nesse ritual, conseguem se religar com a terra, com os outros e com o universo. Alimentados, nos auto-organizamos e nos auto-criamos. Alimentados, nos tornamos novo alimento que nutre nossas relações. São as energias renovadas que nos possibilitam intervir no ecossistema onde habitamos e, dessa forma, entrar em sintonia com o Cosmos.
Sob essa lógica, estar reunidos em torno da mesa serve de representação das três dimensões da vida do ser humano: um ser biológico — um ser social — um ser cósmico. Conforme discutido por Leonardo Boff em seu livro O despertar da águia, essas dimensões se desenvolvem de acordo com quatro eixos básicos, presentes em todas as formações biológicas, sociais e culturais dos seres humanos: adaptação/interação, associação/colaboração, simbolização/significação e espiritualização/religação. São eixos que perpassam a história humana e são configurados através dos tempos. Eles se referem à produção e à reprodução de condições materiais e culturais necessárias à vida humana.
O eixo interação/adaptação diz respeito à dinâmica do ser humano no território em que está inserido, com o propósito de garantir sua subsistência. Munidos de todas as capacidades necessárias para explorar, investigar e pesquisar o mundo à sua volta, os humanos têm se mostrado, ao longo da história, extremamente interativos, adaptativos e flexíveis. Conseguem conviver em diversos ecossistemas e, muitas vezes, criam instrumentos que utilizam para intervir no ambiente de modo a adaptar os ecossistemas a suas necessidades. Estabelecem uma relação com a natureza, o meio ambiente onde moram, tendo em vista a garantia do direito básico de comer e morar.
A interação de um grupo de indivíduos com o ecossistema desenvolve uma inteligência coletiva da qual brota a ciência coletiva, resultado de observação e investigação do funcionamento da natureza. Esse estudo nos permite descobrir novas possibilidades de intervir no ecossistema habitado. O aumento de possibilidades nos leva à criação de instrumentos ou artefatos tecnológicos, destinados a tornar factível o vislumbrado como possível. Desse modo, a ciência abre o campo para a tecnologia que, por sua vez, amplia nossas possibilidades de ação.
Sob essa perspectiva, o saber fazer e os dispositivos tecnológicos são produtos que cristalizam a memória da atividade humana. A seu modo, descrevem as soluções encontradas pelos grupamentos humanos na busca por comida e moradia. A mais disso, os artefatos tecnológicos são instrumentos que aumentam nosso potencial de conhecer, sentir, agir e comunicar. Eles nos ajudam a interagir com o meio ambiente de forma inteligente e, assim, nos postarmos como parceiros da Terra no cuidado de nossa casa comum. Parece que o processo de cultivo da natureza, operado pelo ser humano, começou no neolítico e está atingindo seu ápice em nossos dias. Ele celebra a capacidade de coexistência e colaboração entre o ser humano e a natureza, condição de sustentabilidade de nossa biosfera.
O eixo da associação/colaboração se refere à sociedade como espaço de convivência entre os humanos. Na busca de um viver inteligente, os seres humanos se associam em famílias, tribos, aldeias, vilas, cidades, estados, organismos mundiais e centros de administração. Todos esses grupos nascem de uma inteligência coletiva, geradora de um saber associativo e colaborativo. Para se sustentarem, os grupamentos humanos dependem da diversidade, da solidariedade e da cooperação. É a visão de arena, onde todos precisam participar do jogo.
Nesses grupos, as pessoas introduzem a divisão social do trabalho, distribuem tarefas e responsabilidades. Eles evidenciam grande diversidade nas relações que estabelecem entre seus membros, com as outras instituições e com os que delas não fazem parte. Nos grupos, os humanos criam os espaços de trocas e de câmbios e intercâmbios. Chamados de espaços das mercadorias, fazem surgir o comércio, tecnologia humana de intercâmbio, e a moeda, tecnologia humana de crédito.
Algumas sociedades são mais cooperativas e solidárias; mais patriarcais ou matriarcais; mais centradas no particular ou no coletivo; mais autoritárias ou participativas. Assim, emergem grupos sociais diferenciados a partir de sua participação no processo produtivo e na capacidade de decisão social. Esta diferenciação se mostra na forma como são modeladas as relações de gênero, na maneira como se entendem as gerações presentes e aquelas por vir.
O eixo da simbolização/significaçãotem a ver com o sentido que os seres humanos emprestam a seus atos e à história pessoal, coletiva e cósmica. Em toda associação humana, energizadas na convivência, as pessoas buscam dar sentido e valor ao que fazem. Elas não só falam, pensam e organizam; elas também avaliam, ajuízam fatos e criam valores. Interpretam a vida e a morte, elaboram sonhos, formulam projetos e colocam indagações últimas. Essa consciência coletiva ganha expressão intelectual nas filosofias, expressão formal nas ciências e expressão simbólica nas artes, nas religiões e nas tradições espirituais. Tais procedimentos constituem o complexo e o rico mundo dos símbolos, das ideias, das éticas e das cosmovisões.
O eixo da espiritualização/religação contempla o espírito. Ele é a capacidade do ser humano pessoal e coletivo de sentir-se parte de um todo, de ligar e religar cada coisa e de enxergar totalidades. Ele busca decifrar o Mistério que habita o universo e se mostra em cada ser. Em toda associação humana as pessoas buscam projetar uma visão de síntese e de totalidade de sua história e do universo, dando um nome ao Mistério que tudo perpassa e religa.
É próprio do espírito sentir e experimentar dentro de si, como ressonância, todos os seres e o Ser. Essa energia espiritual colore de sentido todas as demais instâncias, dá-lhes uma significação transcendente. Por isso o espírito deve ser considerado como uma poderosa força estruturadora das pessoas, da história e de seu destino.
Ao dialogar com esse Mistério, o ser humano é capaz de descobri-lo no curso das estrelas, na profundidade dos organismos vivos e de seu próprio coração, no amamentar um bebê, no contemplar o sorriso de uma criança, a beleza das flores, o nascer ou o pôr do Sol. Diante do Mistério, o homem pode encher-se de veneração e respeito, pode perceber cada ser como sinal revelador de sua presença. Pode amar cada pessoa humana como ama a si mesmo e, desse modo, sentir-se construtor de uma nova Terra, de onde vem o alimento colaborativo que faz nascer a admirável sinfonia da Vida.
Esses quatro eixos — o adaptativo, o associativo, o simbólico e o espiritual — estão presentes em todo o agir humano aqui na Biosfera. São as rodas que fazem andar a história da humanidade, em suas dimensões cósmica, biológica e sociocultural. Eles configuram desafios permanentes que os humanos buscam responder em cada formação sociocultural em todos os tempos. Em cada formação social, as pessoas precisam comer e habitar, devem conviver com um mínimo de solidariedade e colaboração, dar sentido e valor ao que fazem e devem projetar uma visão de síntese e de totalidade de sua história e do universo, dando um nome à energia ou ao espírito que tudo perpassa e religa.
Terminamos lembrando da tradição do sábado, ligada ao tempo de repousar. Na metáfora bíblica da criação, depois de trabalhar seis dias, o Deus criador fez do sétimo o sábado — do latim sabbatum ou do hebraico shabat — literalmente o dia do descanso. É o dia para que a Terra e os seus habitantes possam descansar e restaurar suas energias.
Nos dias atuais, escolhemos Domingo ( o dia do Senhor) ou o Sunday (dia do Sol) como dia de começar a semana. Vêm depois os dias de trabalho. Embora com denominações trocadas, a ideia do repouso semanal continua. Somos convidados a repousar dos trabalhos habituais, para deixar — graças à diminuição do consumo habitual — que a Terra se regenere e o mundo se reorganize. É um apelo para que encontremos estilos de vida sustentáveis que restituam à Terra o repouso de que precisa. Temos necessidade de encontrar vias de subsistência que garantam casa e comida para todos, sem destruir os ecossistemas que sustentam nossa biosfera.
De algum modo, a pandemia atual nos levou a redescobrir estilos de vida mais simples e sustentáveis. A crise deu-nos, em certo sentido, a possibilidade de desenvolver novas maneiras de viver. Foi possível constatar como a Terra consegue recuperar se a deixarmos descansar: o ar tornou-se mais puro, as águas mais transparentes, as espécies animais voltaram para muitos lugares donde tinham desaparecido. A pandemia nos levou a uma encruzilhada. Devemos aproveitar este momento decisivo para acabar com atividades e objetivos supérfluos e destrutivos, e cultivar valores, vínculos e projetos criadores. Devemos examinar os nossos hábitos no uso da energia, no consumo, nos transportes e na alimentação. Devemos retirar, das nossas economias, aspetos não essenciais e nocivos, e criar modalidades vantajosas de comércio, produção e transporte dos bens.
(Papa Francisco — em 1º. de setembro de 2020, Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação)