Ao relembrar os antepassados, aqueles que andaram em um tempo anterior ao nosso, procuramos desenhar os caminhos por eles percorridos aqui na biosfera. É nossa busca pelo entendimento do homem, imerso em todas as suas realidades. Costumamos denominar de inteligência essa capacidade de entendimento das ações e processos implantados ao longo da história. Usamos o termo inteligência como resultante da junção de inter (por dentro) e legere (ler) ou ligare (ligar). Assim, inteligência é nossa capacidade de ler o que está por dentro das coisas e fenômenos e, ainda, nossa capacidade de ligar ou relacionar tudo o que conseguimos observar. A mais disso, a inteligência nos permite vislumbrar o destino de tudo o que fazemos, como capacidade que temos de saber para onde caminhamos.
De modo resumido, podemos afirmar que a inteligência é nossa capacidade de responder às perguntas existenciais que encontramos escritas em nós mesmos: De onde viemos? Onde estamos? O que precisamos fazer onde estamos? Para onde estamos indo? Como seres capacitados para nos relacionarmos e feitos para viver em sociedade, essas questões são postas para cada indivíduo e, também, para todo grupamento humano.
Se compararmos nossa vida a uma viagem, o “onde estamos” nos pergunta o que fazer e como fazer nesse lugar, enquanto montados em um pedaço de tempo. Muitas são as respostas dadas pelos humanos no seu habitar a Terra. Todas elas se fundamentam na visão de mundo construída por meio da inteligência. Para fixar ideias, consideramos três tipos de inteligência: a intelectual, a emocional e a espiritual. Separados por razões explicativas, esses três tipos andam juntos e formam um todo, que podemos chamar de mente humana.
A inteligência intelectual diz respeito à racionalidade: é a inteligência analítica por meio da qual formulamos conceitos e fazemos ciências. A ideia é de que o ser humano tem uma organização neural que lhe permite pensar de forma lógica e racional. Ela faz surgir o famoso QI (Quociente de Inteligência), largamente utilizado no decorrer do século XX, em testes que mediam o nível de inteligência do indivíduo através de qualidades lógicas: Isaac Newton, por exemplo, tinha QI 190 e Einstein, QI 160. Com a inteligência da razão organizamos o mundo e buscamos solucionar problemas objetivos.
Chamada de espírito geométrico, expressão criada por Blaise Pascal (1623–1662), a inteligência intelectual está associada à dimensão do masculino, presente nos homens e nas mulheres. Responde pela capacidade de ordenação, de racionalização, de abertura de caminhos, de superação de dificuldades e de construção de um projeto de vida ou de civilização.
Devemos a Renê Descartes (1596–1650), filósofo e matemático francês, o reconhecimento do cérebro como lugar do pensamento ou da razão. Colocando a dúvida como seu pilar, o método cartesiano considera falso tudo aquilo que possa ser colocado em dúvida. A única coisa de que não se pode duvidar é da própria dúvida e, consequentemente, do pensamento. Vem daí a máxima Penso, logo existo. Ou seja, se eu duvido de tudo, o meu pensamento existe e, se ele existe, eu também existo.
Descartes expõe seu método no livro “Discurso sobre o método: a fim de bem usar sua razão e procurar a verdade nas ciências”, publicado em 1568, com o respaldo privilegiado do Rei. A concepção nele exposta resultou em ruptura com a filosofia tradicional aristotélica e medieval, abrindo caminho para o método científico e a filosofia moderna. O Penso, logo existo questionou a certeza de uma teologia que só admitia a verdade vinda de Deus, estabelecida por meio de dogmas indiscutíveis.
A inteligência emocional diz respeito à emoção: é o que nos caracteriza como seres de paixão, empatia e compaixão. Designada como QE (Quociente Emocional), foi popularizada por David Coleman, psicólogo e neurocientista de Harvard, com seu livro A Inteligência Emocional. As pesquisas realizadas demonstram o que era convicção desde Platão, passando por inúmeros pensadores e culminando em Freud: a estrutura de base do ser humano não é a razão (logos) mas a emoção (pathos). Primeiramente somos seres emocionais e, só em seguida, racionais. Ela acrescenta ao Penso, logo existo uma nova visão de Existo, logo penso. Substitui a mente separada do corpo pela mente que só age porque está incorporada. Ela responde ao de onde viemos: nos indica que antes de sermos humanos, somos mamíferos. Somos frutos da Terra, gestados em sua biosfera durante bilhões de anos e nascidos homo sapiens.
Com Blaise Pascal, matemático, inventor da máquina de calcular e filósofo, podemos dizer que a inteligência emocional é o esprit de finesse, expressão que traduzimos como espírito de gentileza. Ela segue a lógica do “coração que tem razões que a própria razão desconhece”. Está associada à dimensão do feminino, presente nos homens e nas mulheres. É nossa capacidade de pensarmos por meio do corpo, de darmos espaço à ternura e ao cuidado, de abrir-nos ao sentimento, à gratuidade e à sensibilidade para com o mistério das pessoas, da vida e do universo inteiro. Responde pela capacidade de captarmos totalidades articuladas, de termos inteireza, de cultivarmos o mundo interior, de apreendermos, na nossa intimidade, as ressonâncias do mundo exterior em termos de símbolos e de modelos.
Pesquisas recentes, feitas por neurólogos, neuropsicólogos e neuroloinguistas, auxiliados por técnicas de magnetoencefalografia (que estuda os campos magnéticos do cérebro), mostraram que existe em nós um outro tipo de inteligência. É cientificamente verificável que, além de captarmos fatos, ideias e emoções, somos capazes de perceber os contextos maiores de nossa vida: são totalidades significativas que fazem com que nos sintamos inseridos no Todo.
A base experimental está na biologia dos neurônios. Na década de 1990, o neurologista, Vilanu Ramachandran, e o neuropsicólogo, Michael Persinger, utilizando técnicas de escaneamento do cérebro, identificaram uma área que se iluminava a cada vez que as conversas giravam em torno de temas espirituais, relacionados a idealizações e utopias. Nas inúmeras repetições de testes, localizaram, nas conexões neurais situadas nos lobos temporais, um ponto ligado à necessidade humana de busca do sentido da vida, ao qual chamaram de “Ponto de Deus”. Responde ao para onde estamos indo. A denominação Ponto de Deus se refere à visão, presente em muitas culturas, que percebem Deus como nossa destinação final, um Deus que mora no Paraíso, lugar para onde queremos ir.
No ano 2000, a física e filósofa, Dana Zohar, em parceria com o psiquiatra Ian Marshal, lançou o livro “QS — Quociente Espiritual”. Sustentado pelas pesquisas científicas feitas ao longo de uma década nas áreas de neurologia, neuropsicologia e neurolinguística, o livro mostra que o QS é a base para que o QI e o QE operem em conjunto, de modo eficiente. É a inteligência que nos torna mais sensíveis a valores e a questões ligadas à transcendência, amplia nosso horizonte e nos faz mais criativos.
Espiritual vem do latim spiritualis, literalmente o que serve para a respiração. Na raiz está spiritus, termo usado para indicar sopro, vento, hálito, exalação, respiração. O sopro está em muitas línguas quando nos referimos a resposta afirmativa. Assim, por exemplo, aparece no SIM português, no YES inglês, no SHI do chinês ou no JA alemão. O sopro está no psi de psicologia, psicanálise e psicografia, entre muitas das áreas que lidam com o humano. Serve, ainda, para indicar ânimo, coragem ou inspiração.
O sopro está presente em muitas tradições religiosas, manifestações da ligação do humano com o transcendente. Para os judeus, o sopro anima o boneco de barro, metáfora bíblica para indicar que o homem é soprado pelo divino. Lembra o boneco de barro de Prometeu, animado pelo fogo roubado de Zeus. Na crença yorubá e nagô, tão presentes na Bahia, é o axé universal. Para o cristianismo é o Espírito Santo: ele se mostra como vento que não tem forma e sopra em todas as direções; desce em forma de línguas de fogo, sugerindo ser um comunicador entendido por todos. O SHI do taoísmo chega em forma de Yin e Yang, duas energias presentes em todas as coisas e seres. Para muitas populações é o espírito que dorme nas pedras, cresce nas florestas, se move nos seres vivos, dá asas ao homem e abraça a Mãe Terra e, nesse abraço, abraça o Cosmos.
Salientamos que espiritualidade não é monopólio das religiões, nem dos caminhos espirituais codificados. A espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano. Conforme destacado por Leonardo Boff, em seu livro Espiritualidade, publicado em 2003, “essa dimensão espiritual que cada um de nós tem se revela pela capacidade de diálogo consigo mesmo e com o próprio coração, se traduz pelo amor, pela sensibilidade, pela compaixão, pela escuta do outro, pela responsabilidade e pelo cuidado como atitude fundamental”.
Os três tipos de inteligência, identificados até agora, agem sempre de maneira integrada. Eles se manifestam em todas as formas de cultura humana e aparecem necessariamente em todo empreendimento que pretenda ser caracterizado como humano. Elas estão ligadas a nossa necessidade de ter um propósito de vida, a partir do qual desenvolvemos valores éticos e crenças que norteiam nossas ações e processos, implantados em todos os grupamentos humanos. Elas nos movem, agregam sentido ao que fazemos, transformam nossa vida, contribuem para nossa realização pessoal e coletiva.
Encontrar um sentido mais amplo, que vai além de nossas necessidades de sobrevivência, é uma necessidade que sempre esteve presente na história da humanidade: ela nos faz compreender o sentido de pertencer, de fazer parte de algo maior ao ampliar nossa percepção de que somos todos interligados e interdependentes nesse grande círculo de relações em que vivemos, abarcando o planeta e o Cosmos.
Para terminar, consideramos todas essas inteligências presentes na trindade familiar: pai, mãe e filhos. Um não existe sem o outro e, juntos, formam a família. É o lugar onde os adultos se colocam a serviço dos que estão crescendo: são alimentados, começam a dar os primeiros passos e a explorar todo espaço da casa. Mostram uma intensa vontade de sair para a rua e de andar com as próprias pernas. Na família, nossa primeira e essencial escola de vida, construímos o significado de ser pai, de ser mãe e de ser irmão. É o aprendizado do saber acolher e do saber cuidar. É o cultivo da empatia, da paixão e da compaixão que nos movem na Biosfera do Amor.
Na lição de casa, aprendemos a celebrar a diversidade e agradecer porque somos diferentes. Descobrimos que fazer um bolo, contar uma história e brincar com os filhos, dando o melhor de nós mesmos, é nossa maneira de servir a família. Nesses pequenos afazeres, vamos descobrindo que, ao servirmos em casa, estamos servindo a humanidade e contribuindo para um viver humano inteligente.
Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não usar suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós,
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa,
Ama também o arco que permanece estável.
(Kalil Gibran , filósofo e escritor libanês)